Este capítulo pretende apresentar o gerenciamento das relações de emprego e de trabalho no Sistema Único de Saúde – SUS e no âmbito municipal.
O tema se insere no contexto mais amplo que envolve a discussão sobre o papel do Estado. A finalidade principal dessa iniciativa é promover o desenvolvimento das relações de trabalho no sector público e o tratamento dos seus conflitos com o objectivo de prestar e atender, com qualidade, eficácia e democracia, os serviços públicos e as demandas da cidadania, tanto em seu benefício como no da dignidade da pessoa humana, supostamente um dos objectivos fundamentais do Estado.
Para promover o desenvolvimento das relações de trabalho no sector e alcançar níveis mais altos de qualidade dos serviços é condição básica o aprimoramento do aparelho administrativo. Isso significa adoptar medidas de curto, médio e longo prazos, de carácter objectivo, como investimentos consistentes nas áreas de Recursos Humanos, contratação de pessoal, remuneração digna, qualificação profissional, empenho e produtividade dos servidores, bem como nas áreas de equipamentos, de informática e de condições materiais e físicas para a realização do trabalho, que
fazem parte do repertório básico da chamada “Administração de Recursos Humanos”. Além disso, significa também adoptar um novo conceito de administração de relações de emprego e de trabalho para o sector.
Observa-se que a concepção administrativa de recursos humanos praticada no Brasil, de corte autoritário, nega ou trata de forma compulsória os conflitos decorrentes das relações de trabalho, mesmo reconhecendo que os
conflitos constituem aspecto inerente às relações sociais e, especialmente, às relações de trabalho. Diante de seu carácter intrínseco e permanente, não é possível “bani-los” por sentenças, decretos ou actos administrativos, mas cabe reconhecer que eles podem ser analisados segundo uma óptica positiva, se forem considerados como possíveis fontes reveladoras de causas que interferem na consecução das finalidades dos serviços públicos. Podem indicar novos caminhos para a busca de soluções e, até mesmo, para gerar mudanças voltadas à melhoria da eficiência dos serviços.
A reforma administrativa, se implementada, pode contribuir para agravar os actuais níveis de conflitos que ocorrem no sector. Nos meios jurídicos é esperada muita polémica em torno, por exemplo, da aplicação de mais de um regime jurídico de regulação de pessoal e suas consequências; problemas quanto à equiparação de direitos e quanto à demissão de servidores; aplicação de punições; discussões sobre sistema e critérios avaliação de servidores; legalidade e consequências da celebração de contratos de gestão, etc. Na verdade, toda essa expectativa de agravamento dos conflitos justifica, de forma ainda mais contundente, a necessidade de introdução de sistemas dinâmicos capazes de gerenciar as relações conflituosas a favor da qualidade dos serviços e não apenas como
cumprimento de uma obrigação burocrática.
O administrador de saúde e o administrador de recursos humanos em particular devem dispor de uma nova ferramenta de abordagem das relações conflituosas de trabalho, capaz de aglutinar, motivar e envolver todos os segmentos interessados e de responder com agilidade às questões que lhes forem apresentadas.
Existe a proposta de um “Sistema de Gestão Qualificativa das Relações de Emprego e de Trabalho no SUS” que introduz inovações de carácter conceitual e pragmático. O sistema reconhece e pressupõe a natureza intrinsecamente conflituosa das relações de trabalho e de serviço no sector e propõe metodologia e instrumentos adequados para gerenciá-las democraticamente. De acordo com suas regras, os conflitos decorrentes dessas relações (interesses meio) devem ser solucionados por intermédio da participação directa e efectiva das partes envolvidas, que assumem o direito-dever de apresentar propostas de soluções sustentadas na demonstração da viabilidade e dos benefícios que sua introdução trará aos cidadãos usuários do serviço (interesse fim). O modelo propõe ainda um mecanismo
efectivo de controle social sobre a realização dos serviços por intermédio da participação directa da comunidade de usuários em suas instâncias.
Este texto propõe apresentar ao leitor envolvido na administração das relações de emprego no âmbito do Sistema Único de Saúde algumas linhas básicas de acção encetadas a partir do instrumental administrativo convencional disponível, mas, sobretudo, instigar a ousadia, estimular a criatividade e vislumbrar possibilidades de actuação que superem os limites do modelo convencional.
Cabe ainda uma reflexão sobre o estereótipo, bastante arraigado na nossa cultura administrativa, de aceitar, em nome de alguns princípios pobremente interpretados, a equação “nada se cria, tudo se cumpre” na administração
pública brasileira.
Não é possível tratar de questões relacionadas aos recursos humanos na administração pública sem inscrever o tema no contexto dos princípios gerais que informam o direito administrativo e de suas normas específicas. Por constituírem pressupostos básicos, serão rigorosamente observados, seja na parte informativa, seja na parte propositiva deste trabalho. Assim, os princípios de direito serão apresentados a seguir, de forma sintética e simplificada. As demais normas específicas serão sempre mencionadas quando necessário, caso a caso.
Princípios que regem a administração pública; carácter, objectivos e fundamentos do Estado; finalidade da administração pública. A Constituição Federal, em seu artigo 1º, parágrafo único, afirma que “todo poder
emana do povo”. O povo deveria exercer esse poder, seja de forma directa (como é o caso do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular), seja de forma indirecta (por meio dos seus representantes escolhidos por meio do voto). Em outras palavras, o voto nas eleições representa a escolha das pessoas que exercerão o poder pelos eleitores. De outra forma, isso significa que as leis existentes foram redigidas pelo povo, por meio dos seus representantes. Seu conteúdo busca regulamentar o exercício desse poder, objectivando o interesse público.
O Brasil é uma república. A grande característica dessa forma de governo é que os governantes escolhidos pelo povo são temporários e poderão ser responsabilizados por sua administração pública mediante fiscalização popular,
individual e directa, que poderá ser exercida mediante acção popular movida na Justiça por qualquer cidadão eleitor (quase sempre), e também indirectamente, por intermédio da actuação do Poder Legislativo (que tem como uma das funções fiscalizar o Executivo), ou da participação de entidades civis em órgãos colegiados, como os conselhos de saúde.
A Constituição autoriza qualquer cidadão a cobrar responsabilidade dos governantes de forma ampla e gratuita por meio da acção popular.
“Qualquer cidadão é parte legítima para propor acção popular que vise a anular ato lesivo ao património público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao património histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.”
Assim, o povo escolhe representantes para administrar o que é seu (administração pública). Ele deve ainda fiscalizar, directa ou indirectamente, os actos dos governantes.
Princípios que regem a administração pública
A Constituição traça regras para que o administrador possa gerir correctamente os bens do povo. As primeiras e principais regras que devem nortear a acção do administrador são os princípios constitucionais e os princípios gerais do direito.
As letras iniciais das palavras que denominam esses princípios formam o anagrama LIMPEI, que lembra limpeza, portanto transparência:
- Legalidade;
- Impessoalidade;
- Moralidade;
- Publicidade;
- Eficiência;
- Interesse Público.
Legalidade
O princípio da legalidade está na base do Estado de direito. Entre seus particulares vige o princípio da autonomia da vontade, segundo o qual o que não for proibido por lei é permitido. Diferentemente, o administrador público age sob
o império das leis: só pode fazer o que a lei lhe permite. “Suporta a lei que fizeste” é a proposição recomendada por José Cretella Júnior (1992), ao asseverar que todos os princípios estão fundamentados no princípio da legalidade.
Impessoalidade
A administração pública deve actuar sem que a figura do administrador seja identificada, e não se espera que ele aja objectivando a promoção pessoal. Sua actuação deve ser em nome do interesse público e é por esse interesse que seus actos devem se pautar. Por outro lado, os actos do administrador público não podem privilegiar pessoas específicas, de sua graça ou de sua amizade. Tais actos devem ser dirigidos a todos, indistintamente, excepto nos casos em que a lei permite particularização.
Moralidade
Legalidade + Finalidade = Moralidade
“A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da ideia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo.”
Publicidade
Considerando que o administrador gerencia património público, o gerenciamento deve ser às claras, público e transparente. A publicidade permite à população controlar e fiscalizar a administração. É imprescindível, portanto, para que se exerça o controle social. Tornar público significa inserir o acto num veículo de comunicação.
Eficiência
Princípio introduzido pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de Junho de 1998, que busca promover a obtenção do melhor resultado possível por intermédio da optimização dos instrumentos utilizados. Simplificando, eficiência é a utilização dos meios adequados para a obtenção de resultados satisfatórios. Trata-se, antes de mais nada, de exigência da cidadania. A cidadania tem interesse objectivo de receber do Estado o atendimento a direitos básicos. Serviços ineficientes frustram esse atendimento. Por outro lado, o cidadão paga tributos; tem, pois, todo o direito de exigir serviços eficientes. Em decorrência dessa exigência derivam-se duas consequências imediatas.
Primeira: garantia aos cidadãos de mecanismos de controle da eficiência dos serviços prestados pelo Estado e de
mecanismos de responsabilização e reparação em caso de não atendimento.
Segunda: criação de mecanismos transparentes, sérios e democráticos de avaliação de desempenho dos servidores e dos administradores.
Interesse Público
Os cinco princípios citados até agora, se observados conjuntamente, trabalham de forma harmónica e atendem a um outro princípio basilar da administração pública: o interesse público. A norma fundamental da administração pública é a supremacia que o interesse público deve ter sobre o interesse privado.
Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello (1994), “o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência”.
Acrescenta Diógenes Gasparini (1992) que “nem poderia ser de outro modo, uma vez que todo poder emana do povo e, por evidente, em seu nome e benefício será exercido”, referindo-se ao disposto no artigo 1º da Constituição Federal.
A inobservância de qualquer desses princípios pode gerar a nulidade do acto e, por consequência, a responsabilidade administrativa, cível e criminal do agente.
Carácter, objectivos e fundamentos do Estado
Segundo o princípio da legalidade, o administrador público age de acordo com o que prescreve a lei. Verificamos que, sob o império das leis, a administração pública é instrumento para a consecução dos objectivos do Estado. Nesse caso, há que se verificar na Constituição da República o carácter, os fundamentos e os objectivos do Estado brasileiro e considerar, para o administrador público, o dever de ser seu primeiro observador.
Carácter
“A configuração do Estado democrático de direito”, firmada no artigo 1º da Constituição Federal, como destaca José Afonso da Silva (1992), “consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um elemento revolucionário de transformação
do status quo.” Reforçou-se, assim, a partir da Constituição de 1988, o carácter democrático do Estado, em contraposição à situação anterior. Houve, portanto, mudanças. Ao determinar a democratização política do Estado, a Constituição aponta para a adopção de uma concepção democrática de administração pública para coadunar
os meios aos fins a que almejam.
Objectivos e fundamentos do Estado
Ainda no artigo 1º, a Constituição Federal prescreve que o Estado brasileiro se funde em valores, como o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana. “Construir uma sociedade livre, justa e solidária… erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais… promover o bem de todos” são alguns dos objectivos explicitados no artigo 3º. Construir algo pressupõe sua inexistência. Há, portanto, que promover mudanças para que Estado e sociedade possam viabilizar esses objectivos.
Finalidade da administração pública
Em relação à actuação no campo da realização dos serviços públicos, pode-se concluir que a finalidade precípua da administração pública deve ser prestar e atender, com qualidade, eficácia e democracia, os serviços e as demandas que lhes são legalmente requeridas pela sociedade, em benefício da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Adoptar procedimentos dirigidos à consecução dessas finalidades constitui dever primordial dos administradores públicos. Omitir, inibir ou frustrar esses procedimentos fere os princípios da supremacia do interesse público e da legalidade, pois, conforme Celso Antonio Bandeira de Mello (1994), “as pessoas administrativas não têm disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização”.