A função jurisdicional
I. De acordo com a CRM, “Os tribunais têm como objetivo garantir e reforçar a legalidade como fator da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal”.
Mas o texto constitucional moçambicano, ao lado desta visão certificativa da juridicidade, salienta a conceção coerciva da juridicidade, na qual os tribunais têm um papel decisivo em termos de punição das ilegalidades cometidas:
“Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei”.
II. Desta definição constitucional da função jurisdicional retira-se a orientação geral segundo a qual a administração da justiça incumbe exclusivamente aos tribunais, surgindo estes como uma instituição singular na organização do poder público constitucionalmente relevante.
Tribunais
No entanto, o texto da CRM também atribui aos tribunais uma curiosa “função educacional”, em grande medida extrajurídica, mas decerto imbuída do desejo de ver os tribunais em contexto social: “Os tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”.
III. A preocupação constitucional é ampla em relação ao poder jurisdicional, dedicando a CRM o seu Título IX aos Tribunais, com três capítulos:
– Capítulo I – Princípios Gerais
– Capítulo II – Estatuto dos Juízes
– Capítulo III – Organização dos Tribunais
Claro que há muita legislação ordinária que diz respeito a cada tópico, a qual será referida quando da sua análise.
Os princípios gerais; a resolução alternativa de conflitos
I. A leitura do acervo dos preceitos constitucionais iniciais do Título IX da CRM permite destilar alguns princípios gerais que, de um modo explícito ou implícito, configuram a função jurisdicional:
– o princípio da proibição da aplicação de atos inconstitucionais: “Nos feitos submetidos a julgamento os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição”;
– o princípio da vinculatividade das decisões judiciais: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas…”;
– o princípio da independência dos tribunais: “As decisões dos tribunais (…) prevalecem sobre as de outras autoridades”.
II. Na sua configuração do poder judicial, a CRM abre a porta à composição extrajudicial de conflitos, dando a entender que pode haver instâncias não judiciais com essa função: “Podem ser definidos por lei mecanismos
institucionais e processuais de articulação entre os tribunais e demais instâncias de composição de interesses e de resolução de conflitos”.
No capítulo III, reservado à organização dos tribunais, a CRM assume-se mais explícita, indicando como uma dessas possibilidades a criação dos tribunais arbitrais.
III. O ser a CRM mais genérica na alusão aos meios alternativos de resolução de conflitos significa, com assertividade, que não pretende fechar o assunto no mundo mais restrito da jurisdição arbitral.
É isso o que sucede com a possibilidade – na sequência de um pluralismo jurídico que é também institucional e não apenas normativo – de haver tribunais comunitários, que ficam assim com uma apropriada credencial constitucional.
A Lei dos Tribunais Comunitários (LTC), aprovada pela L no 4/92, de 6 de maio, veio estabelecer algumas das suas características fundamentais:
– critério de decisão: “Não se conseguindo a reconciliação ou não sendo esta possível, o tribunal comunitário julgará de acordo com a equidade, o bom senso e com a justiça;
– âmbito da jurisdição: “Compete aos tribunais comunitários deliberar sobre pequenos conflitos de natureza civil e sobre questões emergentes de relações familiares que resultem de uniões estabelecidas segundo os usos e costumes, tentando sempre que possível a reconciliação entre as partes”, e “Compete ainda aos tribunais comunitários conhecer de delitos de pequena gravidade que não sejam passíveis de penas privativas de liberdade…”;
– provisoriedade da jurisdição: “Nos casos indicados no número um do artigo anterior, quando houver discordância em relação à medida adotada pelo tribunal comunitário, qualquer das partes poderá introduzir a questão no tribunal judicial competente”;
– composição: “Os tribunais comunitários serão compostos por oito membros, cinco efetivos e três suplentes”, e “Poderão ser membros dos tribunais comunitários quaisquer cidadãos nacionais no pleno gozo de direitos políticos e cívicos, com idade não inferior a 25 anos”;
– mandato: “Os membros dos tribunais comunitários exercerão funções, por um período de três anos, sendo permitida a reeleição”.
IV. Decerto que a experiência com os tribunais arbitrais é mais consolidada, caracterizando-se por serem estruturas de composição de litígios que, não integrando o poder jurisdicional do Estado, exercem um poder delegado por este e assentam numa escolha voluntária quer quanto aos respetivos juízes – os árbitros – quer quanto à submissão das causas ao seu julgamento ou ao critério de decisão dos litígios.
Os tribunais arbitrais, exatamente por via de algumas modalidades por que se podem apresentar, são de duas índoles, em função do esquema que preside à respetiva constituição:
– os tribunais arbitrais voluntários e os tribunais arbitrais necessários: quando são criados pelas partes ou a sua criação é imposta por lei;
– os tribunais arbitrais ad hoc e os tribunais arbitrais permanentes: quando a respetiva composição se determina em razão do litígio que lhes é apresentado ou surge com uma duração indefinida.
V. Em 1999, foi aprovada a Lei da Arbitragem, Conciliação e Mediação (LACM), a L no 11/99, de 8 de julho, integrando como seu núcleo central as regras aplicáveis aos tribunais arbitrais, diploma com 72 artigos, assim distribuídos:
– TÍTULO I – Disposições gerais
– TÍTULO II – Arbitragem
– Capítulo I – Disposições gerais
– Capítulo II – Convenção arbitral
– Capítulo III – Árbitros e Tribunal Arbitral
– Capítulo IV – Funcionamento
– Capítulo V – Decisão
– Capítulo VI – Impugnação
– Capítulo VII – Execução
– Capítulo VIII – Arbitragem Comercial Internacional
– TÍTULO III – Conciliação e Mediação
– Capítulo I – Disposições gerais
– Capítulo II – Funcionamento
– TÍTULO IV – Disposições finais e transitórias
Nos termos da LACM, os tribunais arbitrais têm a mais ampla liberdade de escolha do Direito aplicável, por duas vias:
– por decisão das partes: “As partes poderão escolher livremente as regras de Direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja a violação dos bons costumes e dos princípios de ordem pública da lei moçambicana”, admitindo-se ainda que “As partes poderão convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de Direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de
comércio”;
– por decisão dos árbitros: “Os árbitros julgam segundo o Direito constituído, a menos que as partes, na convenção de arbitragem ou em documento subscrito até à aceitação do primeiro árbitro, os autorizem a julgar segundo a equidade”, estabelecendo-se ainda que “Quando as partes não estipulem o Direito aplicável, o tribunal arbitral aplicará as regras de Direito que considere mais convenientes”.
VI. Aspeto que ainda se afigura fundamental na Justiça é a intervenção da Advocacia, não obstante o facto de o texto constitucional moçambicano omitir-lhe uma alusão expressa nesta parte dos Tribunais e apenas se lhe referindo no domínio das garantias dos direitos fundamentais.
A esse propósito, a CRM atribui-lhe um papel relevante: “O Estado assegura a quem exerce o mandato judicial as imunidades necessárias ao seu exercício e regula o patrocínio forense, como elemento essencial à administração da justiça”.
É à Ordem dos Advogados de Moçambique que compete não apenas a disciplina desta profissão como sobretudo a promoção e defesa dos direitos fundamentais.
Este organismo foi criado pela L no 28/2009, de 29 de setembro, tendo paralelamente ocorrido a criação do Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica, pela L no 6/94, de 13 de setembro.