As relações entre o Direito, o Estado e a Religião
I. A conceção geral do Estado Contemporâneo tem ainda associada, numa elaboração mais recente, um modo específico de apreciar as relações entre o poder político e o fenómeno religioso, no sentido de se consagrar um esquema de separação, assim se rejeitando modelos de fusão ou de identificação entre eles:
– o modelo da fusão entre o poder político e o fenómeno religioso, ora com predomínio do fenómeno religioso – teocracia – ora com predomínio do poder político – cesaropapismo;
– o modelo da identificação do poder político com o fenómeno religioso, mantendo-se as duas estruturas de poder paralelamente, com tratamento igual ou diferenciado das religiões em causa, mas com interferências de um sobre o outro.
II. Está assim ínsito no Constitucionalismo um programa de neutralidade religiosa do poder político, aberto às diversas manifestações de religiosidade humana, com isso se reforçando a democraticidade do poder exercido.
Essa não foi, contudo, uma senda uniforme, porquanto em alguns pensadores do Constitucionalismo tal princípio assumiu e assume contornos mais agressivos, diretamente ligados ao laicismo, em que se pretende combater a religião, considerada uma manifestação “obscurantista” ou “irracional” da organização coletiva humana, merecendo, por isso, ser abolida.
A separação entre o poder político e as confissões religiosas determina que as finalidades e as tarefas desenvolvidas pelo Estado não possam ser influenciadas por indicações de natureza religiosa.
Do ponto de vista prático, essa orientação desabrocha em importantes consequências: não só a ausência de uma religião oficial do Estado como a impossibilidade de as instâncias políticas interferirem nas decisões do foro religioso, sendo a vice-versa igualmente verdadeira.
III. Contudo, não se pode considerar a existência de um modelo único de separação cooperativa na relação entre o poder político e o fenómeno religioso, pelo que importa realçar algumas das suas tonalidades:
– o modelo da separação cooperativa igualitária, com relações de colaboração entre o poder político e as diversas religiões, num estrito plano de igualdade;
– o modelo da separação cooperativa diferenciada, com relações de cooperação entre o Estado e o fenómeno religioso, mas com um tratamento especial de alguma ou algumas das religiões, em função de critérios objetivos, como o da sua implantação nos seus fiéis ou o do tipo de atividades desenvolvidas.
Em qualquer destes casos, vigoram dois princípios fundamentais: o princípio da neutralidade religiosa – o Estado não tem uma religião, não se confundindo com nenhuma delas; o princípio do pluralismo religioso – o Estado convive com quaisquer religiões, nenhuma podendo desconsiderar.
IV. Há ainda quem adicione um outro esquema, dentro da separação entre o Estado e as confissões religiosas, que é o modelo da separação absoluta, pelo qual se proíbe qualquer tipo de relação, por mais igual ou cooperativa que seja.
Só que o modelo da separação absoluta, teoricamente mais puro na defesa da neutralidade e do pluralismo religioso, acaba por se transformar num modelo de “confusão” entre o Estado e o fenómeno religioso, dado que se traduz na criação de uma religião estadual “estranha”: a do laicismo, ou seja, a “antirreligião”, que acaba por ser uma religião negativa, com o precípuo objetivo de aniquilar as religiões positivas estabelecidas.
Efetivamente, nenhuma separação absoluta pode sobreviver a um mínimo de indagação: a construção de um Estado Laico pressupõe um conjunto mínimo de relações com o fenómeno religioso.
V. A conceção subjacente ao modelo da separação cooperativa, igualitária ou diferenciada, entre o Estado e as confissões religiosas não quer forçosamente implicar que entre eles se não possam estabelecer variáveis nexos de entendimento.
E esse entendimento até pode ser desejável, em comunidades de intensa manifestação religiosa, na medida em que o poder político deve olhar para o fenómeno religioso como uma realidade viva e social que muito lhe interessa e em nome da qual assenta a sua razão de ser.
A delimitação dos espaços de inter-relação entre poder político e confissões religiosas não se apresenta num um só figurino, sendo antes possível equacionar diversas velocidades:
– um espaço mínimo, de proteção institucional, na medida em que as confissões religiosas tenham direito à proteção da sua existência, jurídica e social, assim como das suas atividades, devendo o Estado prevenir e reprimir eventuais obstáculos e perseguições;
– um espaço intermédio, de partilha de responsabilidades socioculturais, sendo certo que são múltiplos os campos de atividade em que se regista a coincidência dos fins do Estado e das finalidades identicamente prosseguidas pelas confissões religiosas;
– um espaço amplo, de intensa colaboração recíproca, na qual o Estado aceita as atividades de confissões religiosas realizadas com independência do poder estadual, como é o caso dos efeitos civis do casamento ou de outros atos praticados no foro estritamente religioso.
A laicidade cooperativa em Moçambique
I. A opção constitucional do Estado de Moçambique foi indubitavelmente no sentido da adoção do modelo da separação cooperativa entre o poder político e o fenómeno religioso.
Eis uma matéria em que a CRM toma uma posição direta, não se coibindo de estabelecer diversas orientações em três diferentes contextos:
– na configuração do Estado Moçambicano, através da enunciação dos seus princípios fundamentais;
– na proteção dos direitos fundamentais, através da consagração da liberdade religiosa como direito, liberdade e garantia fundamental;
– no exercício do poder político, através dos limites impostos à atuação jurídico-pública no sentido de respeitar a liberdade religiosa.
II. No que é concernente aos Princípios Fundamentais do Título I da CRM, o cuidado com o assunto chegou ao ponto de o texto constitucional lhe dedicar um artigo completo, nos seguintes termos:
Artigo 12
(Estado laico)
1. A República de Moçambique é um Estado laico.
2. A laicidade assenta na separação entre o Estado e as confissões religiosas.
3. As confissões religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funções e de culto e devem conformar-se com as leis do Estado.
4. O Estado reconhece e valoriza as atividades das confissões religiosas visando promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento económico e social.
A formulação constitucional expressamente inclui uma referência ao modelo de separação cooperativa entre o Estado e as confissões religiosas, todas colocadas em plano de igualdade no seu pluralismo, ainda que na condição de a sua atividade não atentar contra a Constituição e a legalidade.
III. Ao nível dos Direitos, Deveres e Liberdades Fundamentais do Título III da CRM, o preceito fundamental é o da positivação da liberdade de consciência, de religião e de culto, no qual se prescreve:
Artigo 54
(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. Os cidadãos gozam da liberdade de praticar ou de não praticar uma religião.
2. Ninguém pode ser discriminado, perseguido, prejudicado, privado de direitos, beneficiado ou isento de deveres por causa da sua fé, convicção ou prática religiosa.
3. As confissões religiosas gozam do direito de prosseguir livremente os seus fins religiosos, possuir e adquirir bens para a materialização dos seus objetivos.
4. É assegurada a proteção aos locais de culto.
5. É garantido o direito à objeção de consciência nos termos da lei.
Este direito fundamental vai depois irradiar para outros âmbitos específicos em que se sente a relevância da atividade religiosa:
– a título individual: através da livre atuação das pessoas na expressão da sua fé religiosa, em privado e em público, no culto ou em quaisquer outras manifestações pertinentes;
– a título institucional: através da livre criação de associações religiosas, bem como a liberdade da sua organização e atividade, podendo beneficiar da proteção do Estado e da Ordem Jurídica.
IV. Em matéria de Organização do Poder Político, prevalece a orientação da separação entre o poder político e o fenómeno religioso, havendo a impossibilidade da identificação ou, pior, da fusão entre estas duas esferas
da vida coletiva.
Em vários dos seus âmbitos de atuação, o Estado-Poder está sujeito a uma orientação de neutralidade religiosa, obedecendo a algumas proibições:
– na prestação do serviço militar por razões de consciência: “É garantido o direito à objeção de consciência nos termos da lei”;
– na denominação dos partidos políticos: “É proibido o uso pelos partidos políticos de denominações que contenham expressões diretamente relacionadas com quaisquer confissões religiosas ou igrejas ou a utilização de emblemas que se confundem com símbolos nacionais ou religiosos”;
– como limite material de revisão constitucional: “As leis de revisão constitucional têm de respeitar: (…) c) a separação entre as confissões religiosas e o Estado”.
V. No plano do Direito ordinário, há a referir o RAR, que contém um importante preceito relacionando a atividade parlamentar com o fenómeno religioso.
O RAR estabelece o seguinte: “Na fixação das datas para o funcionamento do Plenário e das Comissões de Trabalho, a Assembleia da República respeita as celebrações da Páscoa, do Natal, do Ide-Ul-Fitre e do Ide-Ul-Adha”.
VI. Em matéria de atividade jurisprudencial, cumpre mencionar uma antiga decisão do Tribunal Supremo, na vigência da CRM1990, tirada em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Trata-se do Acórdão proferido no Proc. no 1/96396, no qual aquele alto tribunal considerou inconstitucional o diploma aprovado pela Assembleia da República, remetido para promulgação presidencial, em que se previa
feriado para as datas religiosas do Ide-Ul-Fitre e Ide-Ul-Adha, por violação do princípio da igualdade e da liberdade religiosa.