Descrição breve dos Direitos Constitucionais Africanos Lusófonos
I. Sendo Moçambique um Estado Africano Lusófono, interessa preliminarmente situá-lo no contexto geral das características que é possível encontrar na compaginação dos Direito Constitucionais dos Estados Africanos de Língua Portuguesa, afigurando-se útil vislumbrar cada um deles, assinalando as suas particularidades. São eles:
– Angola;
– Cabo Verde;
– Guiné-Bissau;
– Moçambique; e
– São Tomé e Príncipe.
II. De todos estes Estados, foi Angola o último a alcançar uma situação de paz, real desde 2002, aquando da cessação de hostilidades por parte do grupo rebelde UNITA, na sequência da morte do seu líder.
O certo é que o novo sistema constitucional angolano foi edificado há mais de duas décadas, na altura em que se conseguiu um outro cessar-fogo, depois dos Acordos de Bicesse, e foi possível realizar as primeiras eleições gerais no país, presidenciais e legislativas.
O advento desse período foi marcado pela aprovação de uma nova Lei Constitucional em 1992, precisamente destinada a acomodar o novo regime democrático emergente, bem como pela elaboração de numerosas leis ordinárias, destinadas a garantir um ambiente de pluripartidarismo.
Contudo, este clima político não vigoraria mais do que algumas semanas após a realização das eleições de setembro de 1992, pois que se reiniciaria a guerra, nunca a UNITA tendo aceitado os resultados eleitorais.
Em fevereiro de 2010, e depois de várias vicissitudes, seria finalmente aprovada a Constituição da República de Angola (CRA), texto definitivo que veio substituir a Lei Constitucional de 1992 (LCRA).
III. Cabo Verde tem a singularidade de ter sido o Estado que mais rapidamente transitaria para a democracia e onde, no plano prático, mais se tem registado a alternância democrática, tendo os seus dois grandes partidos formado maiorias parlamentares e governamentais.
A sua primeira Constituição, de cunho provisório, seria aprovada em 1975, com o nome de Lei da Organização Política do Estado, e, em 1980, adotar-se-ia um texto constitucional definitivo, com inspiração no modelo soviético, que seria a Constituição de 5 de setembro de 1980.
A atual Constituição, de 25 de setembro de 1992 (CCV), só seria aprovada depois de um período de abertura política, no qual a respetiva redação se realizou em clima de efetivo pluripartidarismo, amplamente efetivada pela LC no 2/III/90, de 28 de setembro.
Este documento não se conserva mais na sua versão original e já foi objeto de diversas alterações, as quais se destinaram a aperfeiçoar o parlamentarismo e a intervenção dos cidadãos nos referendos e nas iniciativas legislativas populares, assim como a melhorar o sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade então introduzido.
IV. A Guiné-Bissau tem vivido, nos últimos anos, sucessivos momentos de agitação e de instabilidade, motivados por alguns golpes de Estado.
A evolução político-institucional da Guiné-Bissau tem a particularidade de ter antecipado o resultado da Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974, porquanto a sua independência chegou a ser proclamada em 24 de setembro de 1973, em Madina de Boé, texto constitucional que depois seria retomado com a concessão da independência formal.
O atual texto constitucional (CGB), alcançado depois de uma revisão profunda ocorrida entre 1991 e 1993, é o terceiro da história deste Estado porque em 1980 haveria um golpe de Estado e, após um interregno revolucionário de 4 anos, se elaboraria uma nova Constituição, em 1984, sem que a nova Constituição de 1980 tivesse chegado a vigorar.
A Constituição de 1993, apenas pontualmente revista em aspetos secundários, já contou com inúmeras tentativas de revisão geral, mas todas naufragaram, quer pela ausência de acordo parlamentar, quer pela ausência de vontade do Presidente da República de promulgá-las.
V. Moçambique, sendo outro dos dois grandes Estados Africanos de Língua Portuguesa, tem sido referido como um caso de sucesso na efetivação de uma negociação internacional de paz.
A sua independência foi alcançada em 25 de junho de 1975 e é dessa altura a entrada em vigor da sua primeira Constituição, que vigoraria até 1990, apenas com pontuais alterações.
Nessa altura, um segundo texto constitucional viria a ser aprovado, a então Constituição de 1990. Desde o início de 2005, coincidindo com a tomada de posse dos novos titulares dos órgãos eleitos – o Presidente da República e a Assembleia da República – está em vigor em Moçambique o seu terceiro texto constitucional, aprovado em 16 de novembro de 2004 (CRM).
VI. São Tomé e Príncipe, o mais pequeno dos Estados de Língua Portuguesa, tem atravessado sucessivos períodos de crise económica e social, tendo tais períodos provocado situações de alguma agitação política.
A independência foi alcançada em 12 de julho de 1975, mas o respetivo texto constitucional só entraria em vigor algum tempo depois, tendo sido aprovado em 5 de novembro desse mesmo ano, na sua Assembleia Constituinte, texto que posteriormente seria objeto de pequenas revisões.
A atual Constituição foi aprovada em 1990 (CSTP) e foi a única, de todos os Estados Africanos de Língua Portuguesa, que se sujeitou a um procedimento de referendo popular.
Depois de muitas propostas e de outras tantas disputas, aquele texto constitucional foi finalmente alvo de uma apreciável revisão constitucional e que teve o mérito de corrigir muitas das soluções iniciais, melhorando-o substancialmente, como sucedeu nas matérias da fiscalização da constitucionalidade e do regime de revisão constitucional.
A caracterização político-constitucional geral
I. Feita esta breve descrição de cada um dos Direitos Constitucionais dos Estados Africanos de Língua Portuguesa, importa agora extrair um conjunto de traços comuns94, segundo estes critérios fundamentais:
– as fontes constitucionais;
– os princípios fundamentais;
– os direitos fundamentais;
– a organização económica;
– a organização política; e
– a revisão da Constituição.
II. De um prisma geral, pode afirmar-se, sem qualquer rebuço, que os atuais textos constitucionais dos Estados Africanos de Língua Portuguesa espelham a influência da CRP, tanto no estilo adotado quanto na sistematização seguida.
Essa influência é extensível a algumas das instituições jurídico-constitucionais que foram escolhidas, o que se compreende dada a presença de jurisconsultos portugueses na respetiva elaboração, bem como a proximidade cultural de muitos dos juristas destes novos Estados, que entretanto se foram formando nas Faculdades de Direito de Portugal.
Este facto desvenda outra nota bem mais impressiva: é que foi com a II República que se reatou uma ligação interrompida nos tempos das independências, afastamento do Direito Português que determinou a adesão a um outro sistema de Direito, de inspiração soviética.
III. Ao nível das opções gerais de Direito Constitucional, verifica-se uma grande comunhão em torno dos grandes princípios constitucionais:
- o princípio republicano, sendo a república a forma institucional de governo preferida, com a eleição direta do Chefe de Estado;
- o princípio do Estado de Direito, de acordo com todas as suas exigências de certeza e segurança, de igualdade e de separação de poderes;
- o princípio democrático, com a existência de eleições periódicas, nas quais participam os cidadãos, num sufrágio que é universal, direto e secreto;
- o princípio do Estado unitário, uma vez que os Estados são unitários, tendo sido rejeitados os esquemas propostos de federalismo, embora atenuado por alternativas de regionalismo político-legislativo, ainda
que de índole parcial; - o princípio social, reconhecendo ao Estado um papel de intervenção na prestação de direitos económicos e sociais;
- o princípio internacional, em que a soberania estadual não impede a inserção externa dos Estados, ao nível de diversas organizações internacionais.
IV. Em matéria de direitos fundamentais, é de frisar que todos os textos constitucionais contêm extensas listagens de direitos fundamentais, que ficam assim a integrar as primeiras partes das respetivas Constituições.
Só que essa conceção de direitos fundamentais é heterogénea porque não bebe apenas da teoria liberal, antes reflete a presença de outras conceções de direitos fundamentais, como as teorias social e democrática.
O elenco dos direitos fundamentais consagrado é reforçado pela presença de importantes regras que orientam os termos da intervenção do legislador ordinário, subordinando efetivamente os outros poderes públicos – o legislativo, o executivo e o judicial – aos respetivos comandos.
O sistema constitucional de direitos fundamentais nem sequer se pode considerar um sistema fechado, mas antes aberto: quer pelos direitos fundamentais atípicos, quer pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), se esclarece que a respetiva tipologia é unicamente exemplificativa, e não taxativa.
V. Relativamente à organização económica, beneficiando de importantes normas constitucionais, acolhe-se um sistema capitalista de mercado e definitivamente se abandonaria a planificação imperativa da economia.
Simplesmente, a passagem à II República nos Estados Africanos de Língua Portuguesa não se faria sem que algumas das instituições da I República se conservassem, num debate que está longe de terminar:
- conservou-se a propriedade pública da terra, globalmente nacionalizada aquando da independência, embora o Estado possa conceder o direito de uso da mesma;
- limitou-se o investimento estrangeiro, numa tendência que tem vindo a atenuar-se, à medida que a capacidade de intervenção e os interesses de grupos económicos estrangeiros tem vindo a aumentar.
VI. Na sua leitura formal, todos os sistemas políticos africanos de língua portuguesa partem de uma visão dinâmica dos órgãos do poder público, com a intervenção efetiva do Chefe de Estado, do Parlamento e do Executivo.
No entanto, não só por ligeiras diferenças textuais quanto sobretudo por divergências interpretativas, a evolução desses sistemas tem apontado em direções distintas:
- numa direção parlamentarizante, sendo hoje já um parlamentarismo racionalizado, em Cabo Verde;
- numa direção presidencializante, em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, sendo o Presidente da República o chefe efetivo do Governo, apesar de existir, mas com escassa autonomia política, a figura do Primeiro-Ministro;
- numa direção semipresidencial, na Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, ainda que ironicamente aqui o Chefe de Estado detenha competências executivas em matéria de defesa e de relações externas.
VII. A revisão dos textos constitucionais corresponde a uma característica comum, que é a da hiper-rigidez das Constituições dos Estados Africanos de Língua Portuguesa.
Na sua alteração, os textos constitucionais submetem-se a regras próprias, que afastam o respetivo procedimento dos esquemas gerais de aprovação da legislação ordinária:
- os limites orgânicos: concentrando a aprovação exclusivamente nos órgãos parlamentares, poder legislativo não partilhado com outros órgãos legislativos;
- os limites procedimentais: exigindo a aprovação das alterações constitucionais por maioria de 2/3 dos Deputados, assim obrigando a um maior empenhamento democrático;
- os limites temporais: impondo que a revisão constitucional só possa ser feita de cinco em cinco anos;
- os limites materiais: forçando a que a revisão constitucional não ponha em causa certas matérias, valores ou princípios, considerados como o “bilhete de identidade” dos textos constitucionais;
- os limites circunstanciais: proibindo a revisão constitucional durante a vigência do estado de exceção.