Apontamentos A Constituição como Lex Fundamentalis

A Constituição como Lex Fundamentalis

Sentido geral e modalidades de Constituição

I. A Constituição, por ser a lex suprema do Estado, é a fonte por excelência do Direito Constitucional, sendo uma fonte legislativa que contém o sistema de normas e princípios jurídicos que, ao nível supremo do Ordenamento Jurídico-Positivo, estabelece a estrutura básica do Estado:

– quer do Estado-Poder, na organização dos seus órgãos e respetivos poderes, bem como o estatuto dos titulares dos mesmos;
– quer do Estado-Comunidade, nas relações do poder público instituído com os cidadãos, que são o seu substrato humano.

Todavia, não se pense que o sentido contemporâneo da Constituição seja totalmente inovador, já tendo sido objeto de múltiplas utilizações antecedentes, ainda que numa perspetiva meramente institucional.

II. Foi esse o caso pioneiro de Aristóteles, que no seu livro Política definiu o conceito de Constituição como “Politeia”, ou seja, como ordenação das magistraturas e, em especial, da magistratura suprema do Estado, nela ainda incluindo o fim da comunidade política: “Um regime pode ser definido como a organização da cidade no que se refere a diversas magistraturas e, sobretudo, às magistraturas supremas. O governo é o elemento supremo em toda a cidade e o regime é, de facto, esse governo”.

Este conceito de Constituição, tal como sucedeu com o rem publicam constituere do Estado Romano, em nada tinha que ver com aquele que viria a ser o conceito atual de Constituição, integrando-se na lógica da aceção institucional de Constituição, que qualquer Estado tem, ao mesmo se juntando os conceitos de nomos – como lei – e de psefisma – como decreto.

Com a Idade Média é que verdadeiramente se geraria o embrião de uma ideia mais aproximada do conceito atual de Constituição no sentido de ordenamento unificador e superior ao Estado. Tal foi evidente com as leis fundamentais medievais224, ainda que estas não pudessem configurar uma aceção formal e material de Constituição que só a Idade Contemporânea pôde trazer.

III. A Constituição – a partir desta ou de outra terminologia – é o ato de poder público dotado de supremacia máxima na Ordem Jurídica Estadual, regulando a organização dos respetivos sistemas social, económico e político.

Daí que seja legítimo divisar, no conceito de Constituição, alguns elementos que lhe são necessariamente congénitos, os quais facilitam a sua distinção de outras realidades:

– o elemento subjetivo – é um ato intencional do Estado, não tendo a natureza costumeira e integrando a categoria das fontes voluntárias;

– o elemento formal – que se localiza num lugar cimeiro do Ordenamento Jurídico Estadual;

– o elemento material – regulando as opções principais do Estado ao nível dos sistemas social, económico e político.

IV. Mesmo se vista nestes seus elementos definitórios, a Constituição pode também ser observada facetadamente, em razão de quatro perspetivas que nela podem estar presentes, que cumpre referir como suas dimensões:

– uma dimensão material: a Constituição Material revela um determinado conteúdo nas opções que transporta e que determina, ideologicamente nascida no Liberalismo228, mas que a evolução do Estado Constitucional veio a alargar e, sobretudo, relativizar;

– uma dimensão formal: a Constituição Formal expressa a ideia de que, sendo um ato legislativo, o mesmo ocupa uma posição suprema no Direito Positivo;

– uma dimensão documental (ou instrumental): a Constituição Documental é encarada como um ato legislativo que realiza a codificação de um dado setor do Direito, nela se arrumando, sistemática e cientificamente, a disciplina fundamental do mesmo;

– uma dimensão institucional: a Constituição Institucional reflete um desejo mínimo de organização da entidade estadual, independentemente da caracterização que possa obter ao nível de certas opções de conteúdo, de forma ou de localização hierárquica.

V. A realidade da Constituição, conforme foi dado a entrever, mostra-se ainda passível de várias classificações, em aplicação de outros tantos critérios de arrumação lógica, de que se evidenciam os seguintes:

a) Constituições estatutárias e Constituições programáticas, segundo uma contraposição crucial na passagem do Estado Liberal ao Estado Social: através desta classificação se pode diferenciar uma perspetiva meramente estática, de garantia de um certo status quo, no contexto do Liberalismo político e económico do século XIX, (i) que são as Constituições estatutárias, e uma perspetiva dinâmica, com um desejo de intervenção económica e de transformação social, em que se regista a aquisição de novos conteúdos, essencialmente nos direitos fundamentais económico-sociais e nas normas sobre aspetos da organização económica da sociedade, (ii) que são as Constituições programáticas;

b) Constituições normativas, nominais e semânticas, usando a célebre classificação do alemão Karl Loewenstein, que mede a efetividade do texto constitucional na sua capacidade para limitar a realidade constitucional, assumindo uma natureza ontológica: (i) as Constituições normativas são textos que verdadeiramente conseguem domar a realidade constitucional, desenvolvendo o objetivo que lhes foi assinalado com o Constitucionalismo na sua perene luta pela limitação do poder público; (ii) as Constituições nominais têm o desiderato de limitar o poder público, mas não o conseguem levar a cabo, por via de mecanismos, jurídicos ou fácticos, que o impedem; (iii) as Constituições semânticas, sucumbindo à realidade constitucional, perdem a finalidade de limitar o poder público e, inversamente, encontram-se ao serviço de um poder político ditatorial, ao mesmo se subordinando;

c) Constituições liberais, sociais, fascistas e socialistas: são espécies de Constituição que, atendendo à forma política de governo e ao tipo constitucional de Estado, refletem cada uma dessas possíveis combinações, sob uma dada perspetiva de organização do poder político;

d) Constituições sociais, económicas, políticas e garantísticas, termos de uma classificação que atende ao setor da Constituição que é objeto de consideração, na medida em que, nas múltiplas matérias que versa, ela pode ser dividida: (i) na Constituição dos Direitos Fundamentais – a parte atinente à positivação dos direitos fundamentais; (ii) na Constituição Económica e esta, por seu turno, subdividindo-se em Constituição Financeira e Constituição Fiscal – a parte referente às regras sobre o sistema económico, o sistema financeiro e o sistema fiscal; (iii) na Constituição Política – a parte atinente à distribuição dos poderes pelos diversos órgãos, bem com o respetivo modo de designação; e (iv) na Constituição Garantística – a parte respeitante aos mecanismos de defesa da Ordem Constitucional;

e) Constituições flexíveis, semirrígidas, rígidas e hiper-rígidas, na esteira da classificação idealizada pelo jurista britânico James Bryce: (i) Constituições flexíveis quando a revisão ocorre sem sujeição a qualquer limite, não sendo o seu regime diverso do que se aplica ao procedimento legislativo ordinário; (ii) Constituições semirrígidas quando isso apenas sucede relativamente a uma parte da Constituição, submetendo-se a outra parte ao regime da rigidez constitucional; (iii) Constituições rígidas quando a revisão se submete a regras mais limitativas do respetivo poder em comparação com as que são aplicáveis ao procedimento legislativo geral, como a aposição de limites orgânicos, formais, procedimentais e temporais; e (iv) Constituições hiper-rígidas quando, em acréscimo a estes limites, se juntam limites materiais e circunstanciais.

VI. É ainda de observar entendimentos possíveis de Constituição usados noutros ramos jurídicos, mas que não autorizam qualquer assimilação com o sentido que obtém no Direito Constitucional.

O mais comum deles é o sentido de Constituição empregue pelo Direito Internacional Público, que é muito distante do sentido dado pelo Direito Constitucional, sendo de referir a propósito de várias ideias:

– Constituição como tratado constitucional ou institutivo de uma organização internacional, sendo até essa a expressão que por vezes se utiliza na respetiva nomenclatura;

– Constituição como feixe de princípios fundamentais, que sintetizam o ordenamento jurídico criado no seio de uma organização internacional;

– Constituição como patamar superior de escalonamento da Ordem Jurídica

Internacional ou de certa organização internacional, assim se evidenciando uma parcela da Ordem Jurídica aplicável.

Noutros ramos do Direito, é também possível falar de Constituição, se bem que num sentido impróprio e que não se confunde com o seu sentido constitucional:

– no Direito Administrativo: num sentido orgânico como composição de um órgão, ou como a sua própria criação;
– no Direito Civil: como ato ou efeito de criar uma pessoa coletiva;
– no Direito Canónico: como ato normativo promulgado pelo Papa, no uso dos seus poderes.

A Constituição como lei estadual

I. Com o enquadramento do sentido geral de Constituição, nos seus diversos elementos, assim como das aceções e modalidades por que a mesma se desdobra, um primeiro traço orientador é o da sua natureza legal e estadual.

É este, de resto, o primeiro aspeto que mais contribui para a respetiva individualização no contexto do Liberalismo e da afirmação histórica do próprio Estado de Direito.

É também este traço que permite melhor posicionar a Constituição na Teoria Geral do Direito, ao nível das suas fontes, bem como no plano da respetiva hermenêutica e aplicação.

II. A Constituição ostenta, desde logo, a sua faceta legal, colocando-se no quadro mais vasto da lei como fonte do Direito, neste caso do Direito Constitucional.

Quer isso dizer que a Constituição representa uma regulação intencionalmente orientada, e que não brota da espontaneidade social, antes correspondendo a uma vontade específica jurídico-pública.

Contudo, não se pode pensar que o costume é incompatível com a regulação constitucional ou que nem sequer é viável a configuração mista de um sistema constitucional com normas legais e com normas costumeiras.

Uma coisa é a incompatibilidade e outra coisa é a radicalidade de o texto constitucional ser formado no contexto de um ato legislativo, com todas as características que lhe estão associadas.

III. Sendo uma lei estadual, a Constituição não é uma lei qualquer e, inversamente, resulta do poder estadual como expressão máxima do poder público, que se representa no Estado através da sua soberania interna.

Isto permite discernir com clareza os verdadeiros textos constitucionais de outros textos, os quais são por vezes até chamados de “Constituição”, mas que em rigor não oferecem os seus mínimos traços definitórios.

Estamos a pensar na defunta “Constituição Europeia”, que mais não era do que um tratado internacional, de cunho institucional, mas que insistentemente se foi chamando “constitucional”. Só que a UE, que pretendia regular, não é um Estado, nem dispõe de um poder constituinte próprio – é uma mera criação dos Estados que a formaram, numa estrutura aproximadamente confederativa.

A Constituição como ato jurídico-público supremo

I. A Constituição é também uma lei singular por se apresentar no topo da Ordem Jurídica, ao ser o cume da respetiva pirâmide, utilizando-se a metáfora kelseniana. Esta superioridade hierárquico-formal na Ordem Jurídica que integra o Estado a que pertence tem depois três importantes concretizações:

– o princípio da constitucionalidade;
– a desvalorização dos atos jurídico-públicos desconformes; e
– a responsabilidade pelos ilícitos constitucionais.

II. O princípio da constitucionalidade, colocando a Constituição acima de qualquer outra fonte, norma ou princípio jurídico, é a vertente substantiva da supremacia constitucional, destinando-se a esclarecer que há uma hierarquia
na Ordem Jurídica e que todas as outras fontes e atos que não tenham valor constitucional lhe devem obediência.

A desconformidade desses atos, fontes, normas ou princípios implica que os mesmos sejam inconstitucionais, por infração daquele padrão com que devem conformar-se.

E esta superioridade, inserta no princípio da constitucionalidade, é maximamente abrangente, por ser:

– tanto uma prevalência em relação aos atos jurídico-públicos;
– como uma prevalência em relação aos comportamentos jurídico-
-públicos.

III. As consequências não podem deixar de ser impressivas na cominação de efeitos para reprimir aquela infração, aqui se assinalando a dimensão processual deste princípio da constitucionalidade.

Se assim não fosse, e este lado adjetivo não funcionasse, enfrentar-se-ia uma norma sem sanção e, sendo a Constituição uma lei imperfeita, dificilmente poderia conservar-se no seu estatuto de supremacia normativo-positiva.

Do ponto de vista prático, a sanção do princípio da constitucionalidade tem duas diferentes vertentes, que podem até sobrepor-se, visando reprimir atos e comportamentos inconstitucionais:

– a desvalorização dos atos jurídico-públicos inconstitucionais, através do seu apagamento da Ordem Jurídica;
– a responsabilização dos autores de comportamentos inconstitucionais, através da aplicação dos diversos mecanismos de responsabilidade jurídica.

A Constituição como núcleo do Ordenamento Jurídico Positivo

I. A Constituição como lei nuclear significa ainda que o seu conteúdo – não já a sua estrutura legal ou a sua força suprema – assume o mais alto relevo que é possível conceber na tarefa que um ato legislativo vai desempenhar: ser o núcleo do Ordenamento Jurídico.

Esta feição nuclear da Constituição implica que pelos seus preceitos devam ser estabelecidas as opções centrais à vida que se organiza no Estado e que, pela sua importância, constam do texto constitucional.

Deste modo, a centralidade da Constituição pode ser duplamente perspetivada:

– ora como uma centralidade qualitativa, uma vez que o texto constitucional insere as grandes linhas de orientação da vida em comunidade e dentro do aparelho de Estado;

– ora como uma centralidade quantitativa, dado que, não sendo tudo constitucionalmente relevante, o texto constitucional acolhe as opções mais importantes, ainda que outros aspetos possam ser deixados aos patamares inferiores do Ordenamento Jurídico.

II. Contudo, não se pode esconder a extrema complexidade da definição das “matérias constitucionais”, isto é, das normas e dos princípios que devem pertencer ao nível constitucional.

Partindo das aceções de Constituição Formal e de Constituição Material, é a este propósito que se diferencia entre dois tipos de normas ou de princípios constitucionais:

– as normas e os princípios materialmente constitucionais: as normas e os princípios que correspondem às matérias que têm dignidade constitucional; e

– as normas e os princípios formalmente constitucionais: as normas e os princípios que têm força constitucional, de cariz supremo.

Para um certo conjunto de assuntos, não há dúvida de que pertencem ao que qualquer texto constitucional contém, segundo uma pertença constitucional óbvia, inerente ao próprio conceito e função de um texto constitucional como articulado fundador do Estado e da sua Ordem Jurídica.

Nesses casos, é da inteira normalidade que as normas e os princípios constitucionais, em sentido material pelos temas de que se ocupam, sejam normas e princípios formalmente constitucionais, estando a forma ao serviço do conteúdo: a especial proteção constitucional é justificada pela delicadeza das matérias que versam.

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Esquematicamente falando, a solução é a da representação, em termos gráficos, por dois círculos iguais e concêntricos, sobrepondo-se os mesmos completamente.

III. A verdade é que nem sempre isso sucede e pode haver situações dubitativas, em que não se percebe se estamos em face de normas e de princípios materialmente constitucionais.

Assim, do prisma do conteúdo e da posição constitucionais, entre as normas e os princípios constitucionais, podem ocorrer não já relações de coincidência, como convém, mas relações de apenas parcial sobreposição, em que estes conceitos – quais verdadeiros círculos secantes – só se intersecionam em parte:

– normas e princípios materialmente constitucionais, mas que o não são em sentido formal; e

– normas e princípios formalmente constitucionais, mas que o não são em sentido material.

São situações indesejáveis e que introduzem uma quebra na simbiose perfeita que deve existir na Constituição, que é uma moeda com o anverso e o reverso, não devendo um viver sem o outro.

IV. De uma perspetiva puramente material-regulativa, relacionando o desiderato da limitação jurídica do poder público com a necessidade de certas matérias serem subtraídas à função infraconstitucional e, consequentemente, assim incluídas na rigidez constitucional240, a evolução que se registou, depois de mais de dois séculos de Constitucionalismo, apresenta oscilações diretamente derivadas do caminho do próprio Estado e do seu papel na sociedade.

O conteúdo constitucional mínimo foi alcançado no período do Estado Liberal do século XIX, marcado por uma preocupação dominante de organização do poder público. Eram Constituições essencialmente orgânicas, cuidavam da estruturação do exercício desse poder, do estatuto do poder político em sentido estrito, dos mecanismos do seu controlo e das competências dos respetivos órgãos. A tal facto não podiam ser estranhos os fins limitados do Estado em termos de segurança, interna e externa, e de justiça meramente comutativa.

Com o Estado Social do século XX, o alargamento das matérias constitucionais esteve em direta consonância com o aumento das tarefas do Estado ao nível económico-social, quer através do aditamento dos direitos sociais, quer através da criação das Constituições económicas. Quanto aos direitos fundamentais, deram-se novas aquisições nos direitos fundamentais económicos e sociais, impondo mais incumbências ao Estado. No respeitante à organização económica, consagrou-se o princípio da justiça social e da igualdade material de oportunidades, através da intervenção do Estado na economia. Os fins do Estado, em decorrência disso, alargaram-se pela junção do bem-estar económico, social e cultural, e da vertente distributiva da justiça, não já apenas comutativa.

O problema da delimitação da Constituição material

I. Indubitavelmente que uma das questões que maior dificuldade tem suscitado à Teoria do Direito Constitucional é a da determinação das matérias que, perante a decisão constituinte, devem ser incluídas na respetiva formalização,
numa perspetiva que não é tanto a da solução específica que deve ser dada a certo problema político-social quanto a de saber se tem essa questão a dignidade suficiente para constar de um texto constitucional.

Sem embargo, estamos em crer que a delimitação, positiva e negativa, das matérias constitucionais não deixa de ser objeto de orientações teoréticas minimamente firmes, as quais podem guiar o decisor constituinte com um apreciável grau de objetividade, pelo que esta é uma questão que se coloca com uma candência bastante limitada.

Relativamente à delimitação positiva, as matérias que inequivocamente devem possuir dignidade constitucional respeitam àqueles domínios que refrangem, no plano do texto constitucional, os problemas diretamente impostos em sede de limitação extrínseca do poder público ou que se assumam como questões de valor jurídico-político, ao espelharem escolhas a respeito da organização do Estado – como o estatuto dos órgãos de soberania, sua composição e relações – ou da sociedade – os direitos dos cidadãos frente ao Estado – ou ainda do próprio texto constitucional – os mecanismos da respetiva proteção, como a revisão ou a fiscalização da constitucionalidade.

No que tange à delimitação negativa, a necessária divisão do Ordenamento Jurídico em diversos ramos, a partir da summa divisio Direito Público/Direito Privado, determina a exclusão do foro da constitucionalidade da regulação jurídica que se afigure prototípica destes setores, como seja a descrição e punição criminais, própria do Direito Penal, ou a disciplina das relações jurídico-familiares e sucessórias, apanágio do Direito Civil.

II. Contudo, por aqui param as certezas quanto às matérias que se apresentam materialmente constitucionais ou insuscetíveis dessa constitucionalização.

E assim é porque o Direito Constitucional não se apresenta definido apenas com base num critério puramente material – que atenda ao domínio da regulação jurídica que produza – mas também segundo um critério gradativo – pelo qual podem adquirir relevância constitucional os assuntos que, pese embora pertençam a outros setores jurídicos, naquele se coloquem com a suficiente importância: as têtes de chapitre que, nas celebérrimas palavras de Pellegrino Rossi, o Direito Constitucional deveria ser relativamente a outros ramos jurídicos.

É por isso que, mesmo nas matérias materialmente excluídas deste setor de regulação, podem elas interessar se e na medida em que reflitam as opções gerais da comunidade política que, em certo momento, elabora a sua Constituição. A partir deste equilíbrio, entramos numa larga zona de delimitação imprecisa, a qual é apenas livremente determinada pelo poder constitucional, em sede constituinte.

O mais que se pode fazer é tentar identificar as motivações ou os fatores que levam à consideração de certa questão no plano da dignidade constitucional, mas tornando-se na prática impossível dizer, abstratamente, qual deve ser esse critério.

III. Metodologicamente, a busca da densificação da fundamentalidade material das normas jurídicas, com o objetivo de a posição constitucional se justificar pela respetiva matéria, pode obedecer a diversos esquemas:

– uma razão axiológica – é materialmente constitucional aquilo que na Constituição deva apresentar-se como a precipitação positiva do Direito Metapositivo;

– uma razão histórica – é materialmente constitucional aquilo que, na História do Constitucionalismo em geral e na História do Estado em causa, foi atribuído às Constituições escritas – os direitos fundamentais liberais e as competências dos principais órgãos estaduais – e que tão bem ficou escrito no famoso art. 16o da DDHC243;

– uma razão sociológica – é materialmente constitucional aquilo que como tal se impuser em cada comunidade política, aí mostrando as suas idiossincrasias, as quais devem perdurar para além da mera conjunturalidade.

IV. A compaginação destas duas perspetivas de observação do fenómeno constitucional – a perspetiva formal e a perspetiva material – inevitavelmente que nos conduz ao problema de saber como se dá a sua interpenetração.

Se os critérios subjacentes à definição das normas e dos princípios material e formalmente constitucionais são teoreticamente distintos, então não há que presumir que se dê, automaticamente, a sua coincidência.

Esta é uma conclusão incontornável, ainda que seja árduo encontrar a respetiva exemplificação prática. Basta pensar na eventual preponderância de argumentos “políticos” do legislador constituinte, tão lapidarmente recordada por Otto Bachof: “Também pode haver Direito Constitucional material fora do documento constitucional; inversamente, nem todas as normas constitucionais formais são Direito Constitucional material com função integradora: antes numerosas normas constitucionais formais devem a sua receção na «Constituição» a simples considerações táticas, nomeadamente à intenção dos grupos políticos que foram determinantes do documento constitucional de subtraírem essas normas à possibilidade de alteração por uma futura maioria parlamentar”.

Este é um problema cujo enquadramento se encontra amplamente condicionado pelo argumento ad terrorem, que é por vezes esgrimido, de que tal operação de comparação só funcionaria verdadeiramente em relação às normas materialmente constitucionais que se pudessem encontrar para além do círculo das que fossem apenas em sentido formal, não devendo acontecer o contrário – achar-se nas normas formalmente constitucionais normas que o não fossem de acordo com um sentido material – na medida em que, como propõe Jorge Miranda, a “…Constituição formal é, desde logo, Constituição material – porque, insista-se (lógica e historicamente) de manifestação da Constituição material que, em concreto, lhe subjaz; porque a forma não pode valer por si, vale enquanto se reporta a certa substância”.

V. Esta é bem a conceção do legislador constitucional – que vivamente repudiamos – como um verdadeiro Rei Midas, que constitucionalizaria qualquer assunto que passasse a regular (!).

Contudo, ela não resiste a um cuidado exame teorético, que rapidamente lhe desvenda profundas contradições, obrigando ao seu abandono.

Neste contexto, o ideal ponto de chegada seria o da coincidência, como se de dois círculos iguais e sobrepostos se tratasse, dos conjuntos de normas e princípios constitucionais em sentido material e em sentido formal.

Isso demonstraria que o legislador constitucional teria conferido o estatuto jurídico-positivo às normas e aos princípios exatamente em função do respetivo merecimento material.

VI. Sendo essa a situação ótima, não é ela necessariamente a situação real e é, deste modo, de admitir a não coincidência entre as normas e os princípios formalmente constitucionais e as normas e os princípios materialmente constitucionais:

(i) pode haver normas e princípios inseridos na Constituição formal que não possuam, do prisma material, a dignidade suficiente para dela constarem;

(ii) pode haver normas e princípios que, não tendo a força jurídico-formal prototípica da Constituição formal, pelas matérias que versam deveriam possuir essa mesma força, sendo apenas materialmente constitucionais.

O essencial reside em como aplicar os critérios, formal e material, que iluminam estas distinções e fazer a respetiva concatenação. Não nos parece que por determinada norma ou princípio ser formalmente constitucional automaticamente se siga que o seja sempre em sentido material, até porque o legislador constituinte pode ter falhado na plasmação do critério adotado.

É evidente que é o legislador constitucional que define, na “zona cinzenta” que mencionámos, o que deve possuir dignidade constitucional, mas não devemos partir da aporia de que essa seja uma operação necessariamente realizada com êxito.

VII. Concebemos, por isso, não obstante reconhecer-se que a fundamentalidade material é largamente delimitada pela vontade do legislador constitucional, que possa haver normas e princípios formalmente constitucionais que o não sejam em sentido material.

É assim que entendemos esta matéria através de dois círculos secantes, e não já sobrepostos, nos quais se encontra, contudo, uma larga zona de sobreposição preenchida por normas e princípios constitucionais resultantes dos dois critérios da substância e da hierarquia.

A aplicação prática deste resultado, reconheça-se, não se afigura fácil, sobretudo porque os critérios de materialização constitucional nem sempre se mostram afinados. Pode ser extremamente difícil apontar casos de normas constitucionais que não coincidam sob essas duas perspetivas.

Seja como for, parece importante associar a essa distinção meramente teorética – porque de duas classificações de normas constitucionais se trata – consequências no plano do regime que lhes é aplicável em decorrência desses resultados.

Para cada uma dessas classificações, essas consequências não suscitam problemas de maior. É possível encontrar essa necessária relevância jurídico-prática:

– no caso das normas e princípios material mas não formalmente constitucionais, isso facilmente se traduz na sua flexibilidade e valor infraconstitucional;

– no caso das normas e princípios que sejam constitucionais só em sentido formal, e não em sentido material, eles podem não prevalecer nas situações de contradição interna, para efeitos de aplicação da teoria das normas constitucionais inconstitucionais, ou com resultados diversos em termos de hermenêutica constitucional, nomeadamente a interpretação extensiva e a integração de lacunas.

VIII. Perante uma dúvida instalada, a tendência prática poderia ser a da consideração de certa matéria como sendo formalmente constitucional.

Só que a expansão exagerada do leque de assuntos constitucionais, com muitas normas formalmente constitucionais sem o serem a título material, pode provocar o bloqueio do funcionamento do sistema constitucional no seu todo, tomando em linha de conta que o Direito Constitucional se impõe aos outros patamares da Ordem Jurídica e que só por uma alargada maioria política e social pode ser modificado.

Esta é uma preocupação constante aquando das manifestações do poder constituinte, ou de qualquer poder de revisão, perguntando-se acerca da necessidade ou da conveniência de certa matéria constar da Constituição Formal.

Pode dizer-se que há um arco de matérias que necessariamente fogem da constitucionalidade, ficando a melhor pertencer a outros setores jurídicos, como o catálogo dos crimes do Código Penal, ou a lista de contratos civis que consta do Código Civil.

Tal não evita, porém, que haja uma larga zona cinzenta, em que a opção da sua inclusão na constitucionalidade formal – e até mesmo na constitucionalidade material – depende das várias influências recebidas no plano ideológico, político, social, económico ou cultural.

A Constituição como código jurídico

I. A Constituição, na sua categoria de ato legislativo, tem ainda o objetivo de ser um código da região jurídica a que respeita: um código de Direito Constitucional.

É verdade que não aparece – nem nunca apareceu – com essa designação, mas não é menos verdade que terá sido ela uma das pioneiras manifestações do movimento codificador do Direito.

A questão é meramente terminológica, e não é substantiva: não é por não ter esse nome que as Constituições deixarão de ser verdadeiros códigos no sentido técnico-científico de tal conceito, sendo a vice-versa também verdadeira.

II. A justificação para a adequação do conceito de código aos textos constitucionais relaciona-se com a observação – quase sempre evidente – de que os Estados concentram nos respetivos articulados constitucionais a globalidade das normas e dos princípios que dizem respeito ao seu Direito Constitucional Positivo, tendo o cuidado de o fazer de um modo sistemático, sintético e científico:

– sistematicamente: porque as normas e os princípios se organizam segundo padrões de uniformidade organizatória, sem duplicações e sem lacunas flagrantes;

– sinteticamente: porque os preceitos constitucionais são sempre impressivos nas respetivas determinações, podendo remeter para outros níveis de legiferação certos pormenores que não fazem sentido no estalão constitucional;

– cientificamente: porque a arrumação das matérias constitucionais obedece a razões lógico-científicas, tornando o todo um sistema coerente de soluções, o que é facilitado por ser, em larga medida, oriundo de uma mesma vontade de legislar.

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Mesmo que a verificação dos requisitos do código jurídico não fossem bastantes, haveria ainda que apontar óbvias justificações de natureza histórica: o Constitucionalismo, com a sua proverbial contribuição para a feitura caprichosamente elaborados e revogados, nas normas costumeiras de difícil localização e nos imensos espaços vazios deixados à arbitrariedade do poder público da época.

III. Só que a existência de um código – aqui, de um código constitucional com o nome de “Constituição” – nem sempre significa que nele se possa reunir a totalidade das normas e dos princípios constitucionais pertencentes a certo Direito Constitucional Positivo.

É por isso que se deve colocar a hipótese de haver normas e princípios constitucionais extravagantes: as normas e os princípios que, tendo valor constitucional ou versando matérias constitucionais, não lograram ganhar inclusão no texto constitucional, que aparece aqui na sua aceção documental.

A Constituição Documental é, assim, a lei constitucional que codifica o Direito Constitucional, ainda que não utilize essa denominação, não tendo de incluir a totalidade das normas e dos princípios considerados constitucionais. São várias as razões que podem estar na génese do aparecimento de normas e princípios constitucionais extravagantes à Constituição:

– as normas e os princípios constitucionais extravagantes originários: as normas e os princípios que, logo desde o início da vigência da Ordem Constitucional, não foram intencionalmente incluídos no texto constitucional, por se referirem a temas que mereciam um tratamento autonomizado e específico;
– as normas e os princípios constitucionais extravagantes supervenientes: as normas e os princípios constitucionais que, no contexto de vicissitudes constitucionais posteriores, foram produzidos mais tarde, não tendo vivido o momento propício para serem incluídos no texto constitucional.

IV. Quer isto dizer que há um Direito Constitucional Extravagante que se consubstancia no conjunto de atos, normas e princípios jurídicos que não integram a Constituição Documental, esta entendida como lei codificadora deste setor jurídico.

A apresentação do Direito Constitucional Extravagante, num certo sentido inevitável dada a centralidade da Constituição, pode obedecer a dois esquemas distintos:

– o Direito Constitucional Extravagante Material: composto pelos atos legislativos, normas e princípios que se situam na Constituição Material, mas que não pertencem à Constituição Documental, normalmente não incorporando também a Constituição Formal, e tendo apenas um valor infraconstitucional, avulsamente consagrados em leis ordinárias;

– o Direito Constitucional Extravagante Formal: composto pelos atos legislativos, normas e princípios que se situam na Constituição Formal, possuindo um valor constitucional supremo, mas que não pertencem à Constituição Documental.

A mitigada relevância do costume constitucional

I. A ideia de Constituição, não só no seu nascimento como através do percurso que já trilhou, está inelutavelmente associada à fonte legal, ao traduzir opções jurídico-normativas criadas para fixar o estatuto do poder político e a sua relação com os cidadãos.

O certo é que a fonte legal não é a única fonte do Direito possível, pelo que se justifica equacionar a relevância que possa ser atribuída a outras fontes normativas, tal como o problema genericamente se coloca na Teoria Geral do Direito.

Trata-se, neste momento, de considerar a pertinência jurídica do costume constitucional, ou seja, das normas costumeiras produzidas com alcance sobre a Ordem Constitucional.

II. Do ponto de vista das relações entre a lei e o costume como fontes normativas próprias na formação dos sistemas constitucionais, de acordo com a proposta de Marcelo Rebelo de Sousa, seria de pensar em três modalidades distintas:

– os sistemas constitucionais essencialmente consuetudinários: conferem um relevo principal ao costume constitucional, relegando a lei e a jurisprudência constitucionais para uma posição secundária, como sucede com o sistema britânico;

– os sistemas constitucionais semiconsuetudinários: dão igual relevo à lei e ao costume constitucional, como a experiência da III República Francesa o mostra; e

– os sistemas constitucionais subsidiariamente consuetudinários: só aceitam o relevo do costume constitucional a título secundário, como acontece com o sistema constitucional norte-americano.

III. Contudo, esta é uma classificação que está longe de enquadrar a realidade:

– a primeira modalidade não pode existir tal como é apresentada, pois qualquer sistema constitucional sempre se apresenta carecendo de um largo apoio em regras de origem legal, as quais, existindo, impedem aquela qualificação de sistema essencialmente consuetudinário;

– já a segunda e a terceira modalidades surgem como hipóteses mais prováveis, tendo a característica geral de somente refletirem uma relevância restrita do costume constitucional no confronto com a lei constitucional.

Cumpre então sublinhar que o costume constitucional jamais pode estar sozinho porque, nos Estados Contemporâneos, este domínio do Direito é obrigatoriamente composto por normas e princípios que têm outra origem – a origem legal, o mesmo é dizer, uma origem num ato voluntário, que é a Constituição.

Daí que o problema da relevância do Direito Constitucional de raiz consuetudinária não possa ser visto isoladamente, pois que estamos observando esta matéria no seio de outras normas e princípios, todos assim construindo um setor do Direito.

Não duvidamos que seja teoricamente conjeturável perspetivar um sistema constitucional puramente consuetudinário. Mas hoje, perante a sociedade tecnológica que atravessamos, ao mesmo tempo que se tornam mais complexas as relações sociais e políticas, não seria viável tal suceder.

É por isso que se deve sempre concluir pela relevância mitigada do costume constitucional, nunca pela sua relevância absoluta ou mesmo essencial.

IV. Mais importante do que as hipóteses de relação entre o costume e a lei como fontes sistemáticas de Direito Constitucional, na partilha dos respetivos espaços de regulação, é saber da legitimidade do costume na formação do Ordenamento Constitucional, no binómio Constituição vs costume constitucional.

Classicamente, as relações entre o costume e a lei podem ser de três tipos, a mesma trilogia se aplicando nas relações entre a Constituição e o costume constitucional:

– o costume secundum legem, que segue as normas e os princípios constitucionais voluntariamente decretados;

– o costume praeter legem, que vai para além das normas e dos princípios constitucionais voluntariamente decretados; e

– o costume contra legem, que se mostra contrário às normas e aos princípios constitucionais voluntariamente decretados.

É de crer que qualquer uma dessas modalidades de costume possa ser relevante no âmbito do Direito Constitucional.

Em relação às duas primeiras categorias, surgem com naturalidade, sendo certo que a realidade constitucional é do mesmo modo sensível à convivência que as normas costumeiras são capazes de produzir no seio da comunidade dos cidadãos ou das instituições constitucionais.

Mais problemática é a aceitabilidade do costume contra-Constitutionem. Não se trata, como se percebe, de colocar em questão todo um sistema constitucional que tenha sido construído na base de uma vontade legal de o erigir, por força de atos constituintes intencionais.

Do que verdadeiramente se trata é de se aceitar, pela via costumeira, a produção de normas e de princípios que, pontualmente, possam revogar as normas e os princípios constitucionais com natureza legal.

V. Os argumentos clássicos que têm sido aduzidos vão no sentido da rejeição do costume contra-Constitutionem, tendo em conta três aspetos, para além da hostilidade estrutural da Constituição à informalidade das manifestações consuetudinárias:

– por um lado, as normas costumeiras nunca poderiam dispor contra as regras da Constituição, que só as validaria desde que as aceitasse, eliminando-se assim logo o problema – até mais geral – do costume contra legem;

– por outro lado, as normas costumeiras seriam formadas fora dos trâmites próprios da revisão constitucional, aparecendo como um poder marginal, que “selvaticamente” se manifestaria fora do quadro constitucional;

– por fim, as normas costumeiras seriam construídas à revelia da vontade constituinte, tanto mais grave quanto é certo ser ela progressivamente mais democrática, num confronto entre a legitimidade democrática geral do texto constitucional e a legitimidade popular muito limitada de uma norma constitucional eventualmente produzida por costume e que revogaria aquela.

Só que estes argumentos não parecem ser consistentemente procedentes, devendo admitir-se a legitimidade do costume como fonte autónoma do Direito Constitucional, ainda que se sublinhando, na prática, o seu papel restrito,
por força da sociedade tecnológica em que nos encontramos.

VI. É liminarmente de afastar o primeiro argumento, segundo o qual o costume contra-Constitutionem não pode valer porque carece de ser autorizado pela Constituição como fonte intencional e legal: como é óbvio, esta modalidade, por natureza, deve colocar-se no âmago de um conflito entre a orientação costumeira e a orientação legal. A legitimidade do costume, para que ele o seja no seu sentido mais genuíno e profundo, reside nele próprio e, como tal, para existir, não precisa de pedir licença à lei.

Os dois outros argumentos também não podem medrar porque assentam num pressuposto errado: o de que o poder constituinte é apenas de natureza legal e que, uma vez exteriorizado, só se realiza nos exatos termos da sua manifestação inicial, que passou a ser a Constituição aprovada.

O poder constituinte não é um poder estático ou que apenas possa irromper de quando em vez: ele existe sempre e pode igualmente assumir a veste de normas consuetudinárias, desde que tal seja o desejo de autorregulação da comunidade política a que respeita, naturalmente a tramitação da revisão constitucional só fazendo sentido para enquadrar um poder legal, e não já uma manifestação de juridicidade com as características das do costume.

Noutra perspetiva, quanto ao princípio democrático, não sendo este o único princípio constitucional, a manifestação das normas costumeiras do mesmo modo reflete tal princípio, ainda que numa mais pequena escala, até se podendo dizer, algo ironicamente, que vem a ser o mais democrático e aceite de todos os poderes, em função da necessária coincidência entre o ser e o dever-ser que o costume, por natureza, postula.

A limitação prática da jurisprudência constitucional

I. Outra fonte normativa a ter em consideração no Direito Constitucional, além da Constituição e do costume constitucional, é a jurisprudência constitucional, que se traduz na produção de normas e princípios jurídicos através da atividade desenvolvida pelos tribunais no concernente à aplicação da Constituição.

Esta não vem a ser uma dimensão frequente no tocante à jurisprudência em geral, já que materialmente consiste na aplicação do Direito aos casos concretos, de acordo com a perspetiva organizatória que é timbre da judicatura, com as inerentes características de independência, de imparcialidade e de irresponsabilidade.

Só que por vezes pode suceder que a jurisprudência decrete a validade geral de certas orientações, com base nas vicissitudes do quotidiano da aplicação dos preceitos jurídicos, fixando entendimentos que passam a assumir um caráter normativo.

Ora, quando tal se passa no Direito Constitucional, deparamos com a jurisprudência como fonte do Direito Constitucional. Porém, esses casos são escassos, fazendo desta fonte sempre uma fonte secundária, devendo ser especificamente enquadrados em cada Direito Constitucional Positivo.

II. A procura do valor da jurisprudência como fonte do Direito Constitucional deve corresponder a uma preocupação pela fixação das soluções normativas desta área do Direito, segundo os órgãos jurisdicionais que o podem aplicar.

Não parece que haja muitas dúvidas quanto à pertinência dos diversos órgãos jurisdicionais relativamente à aplicação do Direito Constitucional, cuja conceção há muito abandonou a ideia de ser um domínio interno e organizatório, para se apresentar como material e totalmente irradiante para os mais recônditos lugares da Ordem Jurídica.

Nos dias de hoje, todos os poderes estão vinculados à Constituição – e, por isso, também o poder judicial lhe está vinculado – e não há assim espaços de imunidade ou de não aplicação da Constituição.

O sentido normativo da jurisprudência, em relação ao Direito Constitucional, resultará dos termos em que estão genericamente previstas as intervenções dos tribunais como aplicadores de fontes do Direito, não sendo o Direito Constitucional excluído do parâmetro de juridicidade a que devem obediência, pois que os tribunais também têm acesso à Constituição como parâmetro de aplicação jurídica nos litígios que são chamados a julgar.

III. No entanto, esta conclusão aparentemente ampla deve ser corrigida por a certos órgãos jurisdicionais – como é o caso do Tribunal Constitucional, em muitos países, ou quem faz as suas vezes – caber um específico papel no tratamento das questões jurídico-constitucionais.

Não sendo a sua intervenção exclusiva na aplicação do Direito Constitucional, ela acabará por ser exclusivista do ponto de vista da especial configuração do poder do órgão judicial competente na produção dos acórdãos que sejam considerados fonte do Direito Constitucional.

Em que termos é que isso vem a suceder? Tal pode surgir nos exatos termos em que a jurisprudência assume este papel normativo, que lhe vai ser especificamente atribuído: quando decreta a inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Todavia, ainda aqui essa possibilidade pode não vislumbrar-se inteiramente clara porque a intervenção do Tribunal Constitucional é primariamente negativa, já que o efeito vinculativo erga omnes só aparece nas respetivas decisões de provimento da inconstitucionalidade.

Ora, é certo que só a muito custo delas se pode deduzir uma orientação normativa constitucional afirmativa de um dever-ser que quer impor o respeito de uma norma ou de um princípio da Constituição, não de uma fonte infraconstitucional.

IV. Afora estes casos, o sentido da jurisprudência constitucional – de todos os tribunais, mas em particular do Tribunal Constitucional – só pode ser encarado como facticamente normativo, não representando, verdadeira e formalmente, uma fonte do Direito Constitucional.

Isto não quer dizer que atualmente, mais do que nunca, não seja relevante estudar e analisar as decisões do Tribunal Constitucional, bem como das dos outros tribunais (embora estas menos relevantes), até porque lhes tem sido incumbida a concretização de muitos espaços constitucionalmente livres, intervindo na margem de conformação do poder infraconstitucional.

Contudo, é óbvio distinguir os planos: uma coisa é os tribunais aplicarem o Direito Constitucional, sendo útil conhecer as respetivas decisões no sentido de cada cidadão poder antecipar as decisões futuras; coisa radicalmente diversa é considerar as decisões dos tribunais na aplicação do Direito Constitucional como obrigatórias, sentindo-se cada um obrigado – e, em particular, os juízes – a seguir no futuro uma dada interpretação ou aplicação normativo-constitucional anteriormente feita, o que não faz sentido, nem sequer vigorando qualquer regra de precedente.