O Estado Pós-Social e as sociedades de risco
I. A chegada do século XXI e de um novo milénio fizeram acentuar um conjunto de problemas que, sobretudo no último quartel do século XX, colocariam em dúvida a utilidade do Estado Social, pelo menos tal como ele fora concebido e praticado a seguir à II Guerra Mundial, discussão que ficou conhecida por “crise do Estado Social”, alguns já dando o nome até de Estado Pós-Social.
Uma das razões radica nas insuficiências do gigantesco aparelho burocrático que se criou com os diversos sistemas de direitos económicos e sociais, fazendo disparar a carga fiscal sobre os contribuintes e gerando diversas ineficiências na gestão dos recursos.
Por outra banda, a Globalização derrubaria fronteiras em todos os domínios, não se excluindo a circulação das pessoas e a migração, para além do Defendendo a existência de um Estado Pós-Social de Direito, ainda que com facto de a competição direta ser feita agora à escala global, e não já dentro de espaços economicamente protegidos.
II. Na perspetiva da proteção dos direitos fundamentais, a configuração do Estado Social tem enfrentado uma mudança sensível na estrutura dos direitos apresentados, surgindo duas novas gerações – a 3ª e a 4a – de direitos fundamentais considerados “pós-modernos”.
Deixando de existir um unívoco fio condutor na positivação destes novos direitos, eles vão surgindo ao sabor de necessidades mais particulares, à medida que outros tantos desafios se colocam ao Estado:
– os desafios da degradação ambiental, com a criação de direitos fundamentais de proteção no ambiente;
– os desafios do progresso tecnológico, com o aparecimento de direitos de proteção da pessoa na Bioética;
– os desafios do multiculturalismo das sociedades, com o aparecimento de direitos de defesa das minorias.
III. Os sinais dessa mudança, que nos parece inelutável, são visíveis nas múltiplas dimensões da organização do poder estadual, pelo que nem sequer se pode dizer que sejam apenas a afirmação de um aspeto parcelar da caracterização da evolução do Estado Constitucional.
Esses sinais são desde logo nítidos na configuração do exercício do poder público e nas relações que este mantém com os cidadãos, afirmando-se a intensidade de uma democracia participativa, que sem colocar em causa a democracia representativa a fortemente condiciona:
– no uso constante de sondagens, assinalando as diversas etapas da decisão política;
– na abertura permanente da decisão política aos contributos dos grupos de interesses;
– na possibilidade de os cidadãos, pela petição e pela iniciativa legislativa popular, poderem impulsionar o procedimento legislativo.
Esses sinais são também claros na configuração da execução dos direitos fundamentais dos cidadãos, com a concorrência entre esquemas públicos, privados e sociais, num evidente recuo do exclusivo dos sistemas públicos. As recentes reformas que se vão fazendo na saúde, no ensino ou na segurança social são disso uma indesmentível evidência.
IV. Pode é questionar-se até que ponto estas alterações, que vão sendo mais estruturais do que conjunturais, se mostram verdadeiramente relevantes para permitirem afirmar um Estado Pós-Social, designação que – à falta de outra melhor – se afirma pela negação daquilo que o Estado já não é.
Uma boa parte da doutrina entende que estas mudanças, a despeito de serem inquestionáveis, se posicionam como acertos normais num longo percurso que o Estado Social já trilhou, mas que não têm em si mesmo a virtualidade de sugerir a transição para um novo tipo de Estado, assumindo-se apenas numa ótica de intensidade e não tanto na respetiva natureza.
Não parece que essa conceção seja suficientemente explicativa da realidade. Os fatores de mudança são tão fortes que tem sentido afirmar o desenvolvimento de um novo modelo de Estado, até por força do influxo da própria globalização e do multiculturalismo que lhes estão subjacentes.
V. Outro dos sinais nesta nova evolução do Estado Constitucional Contemporâneo está precisamente relacionado com a Segurança, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Desde então para cá confirmou-se algo que antes apenas se considerava latente ou indiciário: a conclusão de que o Estado Constitucional, na passagem para o terceiro milénio, se fragilizara, com a conclusão de que a cidadania se passaria a exercer em sociedades de risco, primeiro no plano nacional, para depois se chegar ao nível supra-estadual.
Tudo isto tem sido muito bem frisado por Ulrich Beck no seu conceito de Weltrisikogesellschaft (sociedade de risco mundial): “A única resposta ao terror global (…) é a cooperação transnacional. Nesse sentido, os Estados nacionais, sem poder de facto, têm de saltar por cima da sua própria sombra, da sua ficção de autonomia, para se entregar à luta contra os problemas tanto nacionais como globais (…), alcançando uma nova e coordenada soberania, uma soberania conjunta”.
Esse resultado, ao nível interno, já se desenhava com bastante nitidez no tocante aos riscos sociais, embora também estivesse em expansão para as questões da criminalidade. É determinante observar as estatísticas da criminalidade a partir dos anos sessenta do século XX.
Mas com os ataques terroristas da Al Quaeda, a sociedade de risco tornou-se uma comunidade internacional de risco, com tudo quanto isso passou a implicar ao nível das relações internacionais.
A Segurança como fim do Estado
I. De um modo relativamente inesperado, o clássico fim do Estado – a partir da Idade Moderna, sobretudo desenvolvido pela teoria contratualista e totalitária de Thomas Hobbes – ganhou uma nova acuidade e uma nova coloração, em face de um conjunto alucinante de novas ameaças, riscos e perigos.
Por uma perspetiva, a segurança deixou de ser apenas uma segurança contra atos criminosos para igualmente passar a acolher a prevenção e solução dos riscos naturais, no âmbito da proteção civil, avultando a segurança na sua aceção de safety.
Por outra perspetiva, mantendo-se como finalidade de preservação do Estado, a segurança viria a ser acolhida numa dimensão supraestadual, em consonância com a magnitude dos riscos de ataques terroristas que deixaram de ser nacionais, localizados, públicos e com armas convencionais, assim se revigorando a segurança na sua aceção de security.
II. Todavia, os novos desafios que se colocam à construção da segurança como fim do Estado no século XXI são ainda maiores se nos lembrarmos de todo um percurso que o Estado Constitucional fez no século XX, durante o Estado Social, no sentido da democratização do poder político, com a consumação do sufrágio universal e a multiplicação de formas alternativas de participação política.
Numa palavra: o reforço da segurança como fim do Estado não pode fazer-se à custa da democracia e da liberdade dos cidadãos, criando-se assim um novo conjunto de opções dilemáticas em termos políticos e em termos jurídicos.
Certamente que não tem faltado o debate e até opiniões mais assertivas no sentido do reforço da segurança à custa da limitação da liberdade, sobretudo no Direito Penal, com a construção de Günther Jakobs acerca do “Direito Penal do Inimigo”.
Ainda assim se tem observado a resistência das estruturas constitucionais democráticas, ao mesmo tempo que se têm traçado novos equilíbrios entre a segurança e a liberdade que mantêm a essência do respetivo sentido profundo.
III. Sem desconsiderar a sua posição ao nível dos fins do Estado, a segurança não releva apenas da coletividade e das estruturas públicas, o que indiciaria uma qualquer conceção securitária, descontextualizada do Estado de Direito dos tempos de hoje.
A segurança pode ser entendida em diversas aceções possíveis, numa evidente polissemia de sentido, que complica o seu imediato entendimento, ainda que se baseie sempre na ideia de proteção de valores contra a sua perturbação, através da adoção de comportamentos e de atividades, apoiados em estruturas que propiciam aquele objetivo.
Subsequentemente, é avisado efetuar algumas classificações do conceito de segurança, em nome de outros tantos critérios possíveis:
– o sujeito protegido: a segurança do Estado, da pessoa, dos grupos, da comunidade internacional;
– os bens a proteger: a segurança externa, a segurança interna, a proteção civil e a segurança do Estado, aqui se podendo falar também noutras seguranças mais específicas, como a segurança ambiental, a segurança rodoviária, a segurança alimentar, etc.;
– a intensidade da perturbação realizada: a segurança que é posta em causa por riscos, ameaças e perigos;
– as estruturas e os meios que a asseguram: a segurança militar, a segurança policial, a segurança civil e a segurança privada.
IV. Todavia, a polissemia da palavra segurança extravasa deste seu ambiente natural e assume outras múltiplas formas que cumpre esclarecer, a fim de serem evitadas confusões conceptuais.
Um dos sentidos de segurança como conceito afim ao da segurança que agora se analisa é o de segurança jurídica. A segurança jurídica não tem que ver com a segurança nacional e refere-se a coisa diversa, que é a preocupação com o conhecimento do Direito aplicável, impondo que as respetivas fontes sejam públicas e prospetivas na sua vigência.
Outro dos sentidos de segurança paralelo ao conceito de segurança como fim do Estado é o da segurança social, conceito que se relaciona com a proteção social dos cidadãos perante os riscos sociais de desemprego, doença e velhice e outros equiparados, mas cuja lógica em nada equivale à segurança nacional do prisma do combate às ameaças ou aos riscos que vulneram o Estado e as suas estruturas.
É ainda de mencionar outras aceções de segurança: a segurança no emprego ou no trabalho, a segurança económica, a segurança médica ou no consumo. Todas elas do mesmo modo se afastam do conceito em causa, ainda que reflitam a ideia da verificação de uma ameaça que se pretende esconjurar.
A Defesa e a Segurança em Moçambique
I. Várias têm sido então as respostas que o Constitucionalismo neste início do terceiro milénio tem procurado para corresponder a este desejo de reforço da Segurança, algumas delas mais não sendo do que coisas óbvias, quais ovos de Colombo tão fáceis de descobrir.
Uma dessas respostas é o novo conceito de Segurança Nacional, o qual conglomera todo um conjunto de elementos de proteção do Estado-Poder e do Estado-Sociedade, numa visão integrada – e não compartimentada – das estruturas, dos valores e dos instrumentos de Segurança Nacional.
Deixou de fazer sentido a divisão absoluta das estruturas de segurança, pela inerente fluidez dos novos riscos:
– a fluidez da distinção entre as ameaças externas e as ameaças internas, sendo muitas vezes impossível deparar com a origem das ameaças ao ponto de pré-determinar a intervenção da força competente para debelar esse problema;
– a fluidez da distinção entre as respostas militares e as respostas policiais, muitas vezes as ameaças internas, teoricamente reprimidas pela forças policiais, acabando por assumir uma muito maior virulência do que as ameaças externas, em função de novos fenómenos de criminalidade organizada e violenta.
II. Gradualmente essa nova visão integrada da Segurança – assim se designando por “Segurança Nacional” – tem vindo a ser acolhida pelos Estados, de vários modos:
– ao nível da Política de Segurança, racionalizando estruturas e otimizando meios;
– ao nível do Direito da Segurança, com a criação de novos tipos de crime e mais expeditos mecanismos de prevenção e de combate à criminalidade;
– ao nível das Relações Internacionais da Segurança, fazendo com que o Mundo passe a interessar-se diretamente pelos temas da segurança nos países e a sua repercussão ao nível da paz e segurança globais.
III. O impacto jurídico-constitucional desta nova conceção da Segurança Nacional é a reconstitucionalização dos temas da segurança, ora com novas importâncias sistemáticas, ora com novas soluções regulativas.
É isso o que sucede com a CRM, na medida em que confere tratamento ex professo, no seu Título XIII, à Defesa Nacional, sem bem que numa perspetiva ainda predominantemente tributária do conceito mais restrito de
segurança externa, aqui não incorporando a instituição policial.
Este Título XIII da CRM insere dois capítulos, com uma índole essencialmente organizatória:
– Capítulo I – Defesa Nacional
– Capítulo II – Conselho Nacional de Defesa e Segurança
IV. A verdade, porém, é que os temas da segurança nacional podem avultar noutros lugares da CRM, pelo que estes dois capítulos do Título XIII não esgotam a regulação jurídico-constitucional da matéria.
No Título I, atinente aos “Princípios Fundamentais”, o texto constitucional moçambicano dá uma grande ênfase à paz como orientação da Política Externa e Direito Internacional que Moçambique deve prosseguir, artigo que pela sua importância cumpre transcrever:
Artigo 22
(Política de paz)
1. A República de Moçambique prossegue uma política de paz, só recorrendo à força em caso de legítima defesa.
2. A República de Moçambique defende a primazia da solução negociada dos conflitos.
3. A República de Moçambique defende o princípio do desarmamento geral e universal de todos os Estados.
4. A República de Moçambique preconiza a transformação do Oceano Índico em zona desnuclearizada e de paz.
Cumpre também não olvidar o regime constitucional, integrado no regime das garantias dos direitos e liberdades fundamentais, dos estados de necessidade constitucional, que são os estados de guerra, sítio e emergência.
V. A análise da legislação ordinária evidencia a existência de diversos diplomas sobre estras matérias:
– a LPDS – a Lei da Política de Defesa e Segurança – L no 17/97, de 1 de outubro;
– a LDNFA – a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas – L no 18/97, de 1 de outubro;
– a LSM – a Lei do Serviço Militar – L no 32/2009, de 25 de novembro;
– a LSC – a Lei do Serviço Cívico – L no 16/2009, de 10 de setembro;
– a LSISE – a Lei do Serviço de Informações e Segurança do Estado – a L no 12/2012, de 8 de fevereiro;
– o EMSISE – o Estatuto dos Membros do Serviço de Informações e Segurança do Estado – L no 13/2012, de 8 de fevereiro;
– a LPRM – a Lei da Polícia da República de Moçambique – L no 16/2013, de 12 de agosto.
VI. Não sendo possível analisar todas as dimensões da segurança nacional, cumpre fazer uma apreciação de três setores mais relevantes, frisando antes os aspetos que lhes são comuns e o segundo dele já parcialmente referido:
– a Defesa Nacional e as FADM;
– a Segurança Interna e a PRM; e
– a Segurança do Estado e o SISE.
E o segundo deles já parcialmente estudado aquando do tratamento do Capítulo II do Título XII da CRM, sobre a Polícia.