As vicissitudes normativo-constitucionais
I. Após uma inicial manifestação do poder constituinte, as Constituições não são imutáveis e sofrem vicissitudes, de vária índole, que se projetam sobre a Ordem Constitucional que elas consubstanciam.
Isto significa que as vicissitudes constitucionais produzem efeitos sobre essa Ordem Constitucional, enquadrando-se de duas maneiras possíveis:
– como a modificação da Constituição e das suas normas e princípios;
– como a cessação da Constituição e das suas normas e princípios.
As vicissitudes constitucionais definem-se, assim, em razão da projeção dos seus efeitos, tanto sobre a estabilidade ou a mutabilidade da Ordem Constitucional, como sobre a permanência ou a alteração das normas e princípios que a integram.
II. No plano prático, as consequências que se produzem sobre a Ordem Constitucional existente – total ou parcialmente atingida – são suscetíveis de agrupamento nestes efeitos jurídico-normativos:
– a alteração de preceitos constitucionais;
– a supressão de preceitos constitucionais; e
– o aditamento de preceitos constitucionais.
Não é ainda de excluir a possibilidade de os efeitos sobre a Ordemtecendo, como o efeito suspensivo ou o efeito repristinatório, ali se paralisando a sua eficácia, sem se suprimir a fonte, aqui operando-se a revigência de preceito já eliminado.
III. Apesar da sua diferença, as vicissitudes constitucionais podem sobrepor-se aos momentos de manifestação de poder constituinte, podendo haver casos em que coincidam.
A manifestação do poder constituinte, que desemboca no nascimento de uma nova Constituição, não surge apenas num momento inicial da vida do Estado ou quando anteriormente se vivia em período pré-constitucional.
O poder constituinte pode também ser uma verdadeira vicissitude constitucional – neste caso, surgindo como superveniente ao nascimento da vida constitucional do Estado – quando se exprime numa atuação que dota o Estado de uma nova Constituição, ao derrubar a Ordem Constitucional pré-existente.
IV. A melhor compreensão das vicissitudes constitucionais, nos seus mais recônditos meandros, só se completa com a apresentação das diversas categorias que explicitam a concretização dos efeitos inerentes a cada uma delas.
Para isso, é de esquematizar tais categorias em razão da aplicação de cinco critérios que permitem recortá-las entre si:
– o critério da direcionalidade dos efeitos: efeitos intencionalmente criados ou efeitos espontaneamente produzidos;
– o critério da duração dos efeitos: efeitos permanentes ou efeitos temporários;
– o critério do alcance dos efeitos: efeitos normativos ou efeitos concretos e, ou, individuais;
– o critério da projeção sobre a identidade constitucional material: efeitos que conservam a identidade constitucional material ou efeitos que aniquilam essa identidade constitucional material;
– o critério da conformidade constitucional formal dos efeitos: efeitos formalmente constitucionais e efeitos formalmente desconformes à Ordem Constitucional.
V. A aplicação destes critérios projeta-se na formação destes oito tipos de vicissitudes constitucionais:
– a revolução constitucional: a adoção de uma nova Ordem Constitucional global, contra a Ordem Constitucional anterior, violando-a e substituindo-a, tal vontade se manifestando por diversos modos, imediatamente e logo depois, através de atos constituintes;
– a transição constitucional: a criação de uma nova Ordem Constitucional, materialmente diversa da anterior, mas utilizando os formalismos que esta previa para a revisão constitucional, embora o resultado seja muito mais do que isso, ao implicar a instauração de uma nova Ordem Constitucional;
– a rutura constitucional não revolucionária: o aparecimento de normas e de princípios constitucionais, com violação da Ordem Constitucional, mas que ganham efetividade, nela se incorporando, em qualquer caso sem nunca se ferir o seu núcleo identitário material;
– a exceção constitucional: a alteração temporária da Ordem Constitucional, nos seus aspetos fundamentais, com vista à preservação, in extremis, dessa mesma Ordem Constitucional, em atenção a um padrão de normalidade constitucional que se pretende rapidamente recuperar;
– a derrogação constitucional, autorrutura ou rutura material constitucional: a contradição ou o enviesamento de princípios fundamentais da Ordem Constitucional, numa aplicação concreta e, por vezes, individual, de natureza definitiva, aprovada por ato jurídico-público;
– o costume constitucional: a produção espontânea de efeitos constitucionais normativos, que afetam a Ordem Constitucional nalgumas das suas normas;
– a caducidade constitucional: a extinção das normas constitucionais pré-existentes, por ação de circunstâncias ou nos termos anteriormente previstos;
– a revisão constitucional: a alteração da Ordem Constitucional, em aspetos não atinentes ao seu núcleo essencial, segundo um procedimento estabelecido para o efeito, através da edição de um ato jurídico-público formalmente regular.
Pela sua relevância, é justo que à revisão constitucional seja dada uma atenção especial, para além da sua concretização no Direito Constitucional Positivo Moçambicano.
A revisão constitucional
I. De todas estas vicissitudes constitucionais, umas bem mais amplas do que outras, um cuidado especial – por razões teoréticas e por razões fenomenológicas – deve ser atribuído à revisão constitucional, que se exprime na elaboração de uma lei de revisão, promanada no contexto de um procedimento que lhe é próprio.
A revisão constitucional, através do correspondente poder de revisão, traduz-se na possibilidade da alteração da Ordem Constitucional originariamente estabelecida, mas apenas com um cunho secundário porque de limitado âmbito, quer em função das opções fundamentais que caracterizam o projeto de Direito que se tem em mãos, quer em função do estrito procedimento legislativo que para a respetiva produção se encontra estabelecido.
Isto é: a revisão constitucional não se pode confundir com as vicissitudes constitucionais totais que refrangem o aparecimento de uma nova Constituição, como são a revolução e a transição constitucionais, na medida em que aqui irrompe um poder constituinte, dito originário. A revisão constitucional resulta sempre de um poder que é constituído, algumas vezes erroneamente designado por poder constituinte derivado.
Pode acontecer que o poder constituinte surja sob a veste de uma revisão constitucional – como sucede quase sempre em transição constitucional – e implique uma vicissitude constitucional total: mas evidentemente que
nesse caso não é o nome que conta, mas a realidade conceptual subjacente, que advém de um verdadeiro, embora escondido, poder constituinte, que é sempre originário.
II. A revisão constitucional formaliza-se na edição de uma lei constitucional, que contém preceitos que estabelecem uma conexão com o articulado constitucional existente, no quadro deste conjunto de efeitos:
– o efeito revogatório: o preceito constitucional cessa a sua vigência;
– o efeito inovatório: há um novo preceito constitucional que é acrescentado;
– o efeito modificatório: o preceito constitucional existente fica a apresentar uma nova formulação normativa;
– o efeito suspensivo: o preceito constitucional existente deixa de vigorar por algum tempo.
III. As funções que costumam ser dadas à revisão constitucional radicam no realismo que ela expressa na sempre difícil e, sobretudo, instável ligação do Direito Constitucional à realidade constitucional, pois que aquele corpo de normas e princípios deve constantemente refletir a evolução da situação político-social, ao mesmo tempo que a deve também comandar.
O resultado é uma solução de compromisso em que se admite, até certo ponto, a adaptação da Ordem Constitucional às modificações ocorridas na realidade constitucional, tornando a Constituição melhor afeiçoada a essa mesma realidade, sem nunca, porém, se perverter a sua singularidade fundamental e que é constitutiva da sua ideia de Direito.
Se a revisão constitucional não estivesse estabelecida, seria provável que se conseguisse manter por mais algum tempo a configuração original da Constituição – mas também seria altamente verosímil que essa versão da Constituição, dada a sua rígida imutabilidade, não se podendo atualizar, induzisse mecanismos violentos de alteração da Ordem Constitucional, abrindo mais facilmente a porta a uma nova Ordem Constitucional, assim lhe falecendo a necessária válvula de segurança para a permanência da essência do sistema constitucional adotado.
Sintetizando, pode dizer-se que a revisão constitucional prossegue alguns destes desígnios:
– atualizar a Ordem Constitucional, adequando-a à realidade constitucional, em vista das novas necessidades e preocupações que se sentem, mudando algumas das suas opções;
– interpretar a Ordem Constitucional, estabelecendo novos critérios hermenêuticos em aspetos que tenham ficado por esclarecer e que, em muitos casos, só a prática constitucional permite detetar;
– completar a Ordem Constitucional, suprindo falhas e lacunas nas respetivas disposições, para além de introduzir novos instrumentos.
IV. A apreciação do regime que é aplicado à revisão constitucional, sob a ótica das regras que orientam o correspondente procedimento legislativo, permite equacionar a existência de regras especiais e excecionais, mais ou menos divergentes daquelas que conduzem o procedimento legislativo ordinário.
A Teoria do Direito Constitucional tem encontrado cinco grandes categorias de regras, que se apresentam sob a designação de “limites à revisão constitucional”, já que a sua razão de ser se prende com a conveniência de melhor moderar a amplitude que está associada ao poder legislativo ordinário, mas que não é recomendável, em tão larga escala, no procedimento legislativo de revisão constitucional.
Eis o sentido e o alcance desses limites da revisão constitucional:
a) os limites orgânicos: regras que particularizam a atribuição do poder de revisão constitucional a certo órgão, concebendo-o com exclusividade dentro da partilha geral de poder legislativo pelos órgãos de soberania;
b) os limites temporais: regras que impedem o exercício do poder de revisão constitucional em qualquer momento, apenas o aceitando de vez em quando;
c) os limites procedimentais: regras que introduzem particularidades no iter procedimental que subjaz à elaboração do ato de revisão constitucional, tornando-o de mais difícil consecução, como as maiorias agravadas que são normalmente exigidas;
d) os limites circunstanciais: regras que vedam a expressão do poder de revisão constitucional na vigência de situações de exceção constitucional, assim defendendo a verdade e o livre consentimento da vontade de mudar a Constituição;
e) os limites materiais: regras que afastam do alcance do poder de revisão constitucional um conjunto de matérias, valores, princípios ou institutos que integram o núcleo essencial do projeto de Direito de que o texto constitucional é portador e cuja obliteração poria em causa a identidade constitucional.
Os limites materiais da revisão constitucional
I. Pela sua relevância prática e pela sua complexidade teórica, os limites materiais de revisão constitucional merecem um tratamento mais desenvolvido, inquirindo-se até que ponto tais limites se afiguram operativos.
Os limites materiais de revisão constitucional, por mais espantoso que isso possa ser, acabam por ser os limites mais óbvios que se colocam na expressão do poder de rever a Constituição, uma vez que são eles o “certificado comprovativo” das limitações que necessariamente inerem ao conceito de revisão constitucional.
Se eles não se concebessem, haveria um qualquer fenómeno jurídico-constitucional, mas certamente nunca aconteceria uma revisão constitucional.
A questão reside, pois, na clarificação desses limites, sendo certo que, para esse efeito, os mesmos aparecem nos textos constitucionais protegidos por cláusulas – ditas expressas – de limites materiais de revisão constitucional, as quais suscitam dois tipos de problemas:
– o problema de força vinculativa das cláusulas, por comparação com os outros preceitos constitucionais; e
– o problema de definição dos limites materiais insertos nas cláusulas, na medida em que estas se oferecem com diversas intensidades em ordem a saber o que se considera ser verdadeiramente um limite material, na perspetiva da violação daquela cláusula.
II. No tocante ao primeiro problema, tem sido muito discutida a força jurídica dos preceitos constitucionais que estabelecem cláusulas de limites materiais à revisão constitucional, discussão que, em rigor, pode estender-se a todas as disposições, oriundas do poder constituinte (originário), que semelhantemente configuram o exercício do poder de revisão: a questão não se reconduz, portanto, aos seus limites materiais, mas joga-se em relação a todos os restantes limites.
São fundamentalmente três as posições propostas, levando em consideração a modificabilidade destas cláusulas, no óbvio objetivo de, em sede de revisão constitucional, concomitante ou posterior, se pretender a libertação daqueles limites, alterando-se as matérias que até então se encontravam por eles protegidas:
– a teoria da irrevisibilidade: de acordo com esta teoria, sendo as cláusulas sobre a revisão constitucional criadas pelo poder constituinte originário, só uma nova manifestação do mesmo poder constituinte originário as poderia modificar ou eliminar, nunca uma lei de revisão constitucional, que é sempre, em relação àquele, um poder consti-
tuído e não constituinte;
– a teoria da revisibilidade: segundo este entendimento, as cláusulas sobre a revisão constitucional não ostentam qualquer força especial em relação aos restantes preceitos constitucionais e se a Constituição, na sua versão original, admitiu o poder de revisão constitucional, então deve daí concluir-se que o mesmo também se exerce sobre o próprio
regime de revisão constitucional, ao mesmo tempo que se pode rever o conteúdo que por elas se encontrava abrangido;
– a teoria da dupla revisibilidade (ou revisibilidade faseada): observando esta conceção, a modificação das matérias protegidas pelas cláusulas de revisão constitucional – principalmente sobre os limites materiais, mas não só – deve acontecer a dois tempos, primeiro eliminando-se a cláusula que protege a matéria que se quer atingir e só depois, numa outra revisão constitucional, eliminando-se diretamente o instituto ou o princípio que deixou de estar constitucionalmente protegido pela cláusula de proteção entretanto revogada.
É de defender a primeira teoria da irrevisibilidade das cláusulas que consagram os limites materiais à revisão constitucional, na lógica do escrupuloso respeito pela vontade originária do poder constituinte: não se concebe que, tendo o poder constituinte construído um conjunto de disposições que se destinam a perdurar mais do que os outros preceitos, venha o poder de revisão constitucional, por ele criado e admitido, a adulterar essa vontade inicial. A criatura jamais pode impor-se ao criador!
III. Esta conclusão não acarretará as drásticas consequências práticas de uma excessiva rigidez do sistema constitucional, numa apreciação funcional, ou mesmo de deslegitimação, pois que às gerações vindouras se coarta a possibilidade de alterarem a sua Ordem Constitucional?
Não. A própria consagração de um mecanismo de revisão constitucional é um sinal evidente, pelas funções que lhe estão cometidas, de que se pretende abrir a porta ao aperfeiçoamento do sistema constitucional e de que se pretende que o mesmo permita acompanhar a evolução da realidade constitucional.
É nítido que o problema assume outra magnitude a partir do momento em que se quer não apenas uma revisão constitucional, mas algo mais, como mudar radicalmente a Ordem Constitucional. Nessa hipótese, não havendo tecnicamente uma revisão constitucional, surgirá uma revolução constitucional.
Como quer que seja, o poder constituinte originário existe sempre e se for essa a vontade expressa pelo Estado, segundo os esquemas possíveis da efetividade constitucional, tal poder constituinte nunca está impedido de produzir uma nova Constituição.
Importa é não confundir os nomes e assumir a rutura da Ordem Constitucional, que vai ser substituída por outra. O poder constituinte, esse, mantém-se incólume, esperando uma nova oportunidade de se exprimir.
Garantias da Constituição
IV. Esclarecida a força normativo-constitucional das cláusulas que definem os limites à revisão constitucional, interessa observar diversas situações em que ocorre a violação dessas mesmas cláusulas, para daí se perceber as respetivas consequências, no seio do outro problema que ficou enunciado.
No entanto, nesta consideração, note-se que nem sempre os textos constitucionais fazem uma aplicação correta do conceito de limites materiais de revisão constitucional, dando esse nome a matérias que podem não ter a possibilidade de coincidirem com a sua elevada importância na economia do texto constitucional.
Tem aqui lugar uma tarefa hermenêutica da mais alta dificuldade, mas que permite referenciar o caminho dos princípios fundamentais e das opções que estruturaram o nascimento de um novo poder constituinte.
Os limites materiais, embora possam contar com o auxílio das cláusulas expressas que os formulam, derivam da ideia de Direito que se plasmou na Ordem Constitucional em apreço.
V. O que sucede quando certas matérias foram consideradas como limites materiais de revisão constitucional e, em rigor, não se ajustam a esse conceito, tendo o poder constituinte feito, nesse aspeto, uma qualificação errada? Por outras palavras: o que sucede quando as cláusulas de limites materiais de revisão constitucional não são respeitadas porque excessivas?
A resposta deve ser dada conforme essas matérias se encontram ou não protegidas por cláusulas pétreas, podendo divisar-se quatro casos distintos, em que se equaciona a inexistência, total ou parcial, dessas cláusulas:
a) não havendo cláusulas de limites materiais: se a matéria não for de importância nuclear, ocorre uma normal revisão constitucional; se a matéria for considerada como integrando o núcleo fundamental da Constituição (Verfassungskern), ainda que ocorrendo uma revisão constitucional em sentido formal, na realidade sucede uma transição constitucional, com o aparecimento de uma nova Ordem Constitucional, por adulteração daquele núcleo identitário;
b) havendo cláusulas de limites materiais: se a matéria não for de importância nuclear, tendo a cláusula sido erroneamente referenciada a um assunto que não assume aquela dimensão, ocorre uma rutura não revolucionária, por preterição formal daquela regra, embora não se afetando a identidade constitucional, ato que só permanece se lograr alcançar efetividade constitucional; se a matéria for de importância nuclear, ocorre uma revolução constitucional, por se afetar a identidade da Constituição, ao mesmo tempo que se quebra a constitucionalidade formal das alterações admissíveis ao texto constitucional.
VI. Há uma situação particular que deve ser separada de todos estes casos: a da alteração linguística – mas não normativa – dos preceitos que estabelecem as cláusulas de revisão constitucional.
A imodificabilidade que propugnamos não é de estilo, mas de sentido ordenador, pelo que as alterações meramente linguísticas, se desprovidas de sentido ordenador, não se repercutem sobre a validade da revisão constitucional.
A hiper-rigidez da Constituição da República de Moçambique
I. Mesmo tendo sido aprovada tão recentemente, o texto da CRM – até para ganhar uma maior longevidade – não poderia deixar de equacionar os termos da sua própria revisão.
A opção fundamental tomada foi a de consagrar diversos limites à segregação do poder de revisão constitucional, a saber:
– os limites orgânicos: a revisão fica exclusivamente a cargo da Assembleia da República;
– os limites procedimentais: as alterações ao texto constitucional devem ser aprovadas por maioria de 2/3 dos Deputados em efetividade de funções, não podendo o Presidente da República recusar a sua promulgação;
– os limites temporais: a revisão ordinária da Constituição só pode ser feita de cinco em cinco anos, embora se admita a revisão extraordinária, desde que o órgão competente assuma poderes constitucionais por votação de, pelo menos, 3/4 dos Deputados em efetividade de funções;
– os limites materiais: há um conjunto vasto de matérias que não podem ser objeto de revisão constitucional; e
– os limites circunstanciais: a vigência dos estados de sítio ou de emergência impede a aprovação de “…qualquer alteração da Constituição”.
É assim possível inserir este texto constitucional no elenco das Constituições hiper-rígidas: embora admitindo a sua revisão, tal somente pode suceder em termos limitados, com respeito por um formalismo e por um conteúdo que se perpetua para além das revisões constitucionais.
II. O procedimento de revisão constitucional assenta nas fases fundamentais que são traçadas para o procedimento legislativo parlamentar, embora se introduzam alguns desvios que assinalam a singularidade da revisão constitucional.
Há normas constitucionais específicas, as quais são também acompanhadas por normas de natureza regimental, nos termos da secção II do Capítulo X do RAR.
A iniciativa da lei de revisão constitucional é do “…Presidente da República ou de um terço, pelo menos, dos Deputados à Assembleia da República”1404, fixando ainda o RAR a regra segundo a qual “As propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até noventa dias antes do início do debate”.
A maioria necessária para que essas alterações sejam aprovadas é de dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
A promulgação presidencial do decreto de revisão constitucional não pode ser recusada, não havendo lugar – ao contrário do que normalmente sucede – a veto político: “O Presidente da República não pode recusar a promulgação da lei de revisão”.
A publicação das alterações à Constituição tem a particularidade de ser acompanhada da republicação codificada de todo o texto constitucional já revisto, o que se explica por uma necessidade de segurança e dignidade no conhecimento da nova versão da lei fundamental.
III. Com a finalidade de impor a rigidez constitucional ao seu texto, a CRM consagra limites orgânicos, temporais e procedimentais à respetiva revisão, alguns deles se deduzindo do regime que deixámos brevemente descrito acerca do procedimento legislativo que a acompanha.
No plano dos limites orgânicos, o poder para rever a Constituição só é atribuído à Assembleia da República, poder que não é partilhado com o Presidente da República, não obstante este poder partilhar outros aspetos do poder legislativo.
De acordo com os limites temporais, a revisão constitucional ordinária só pode efetuar-se cinco anos depois de publicada a última lei de revisão, guardando-se assim um período “defeso constitucional”.
Há, no entanto, a possibilidade de se fazer, por razão considerada urgente, a revisão constitucional extraordinária em qualquer momento, mesmo sem ter transcorrido aquele período de cinco anos, mas para isso é necessária uma assunção de poderes de revisão, votada por uma mesmo maioria deliberativa agravada de 3/4.
No que concerne aos limites procedimentais, eles respeitam ao facto de algumas das fases – como a iniciativa ou a promulgação – terem um regime excecional, contrário ao regime geral, para além de a maioria de aprovação ser uma maioria agravada de dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
IV. A CRM vai ainda mais longe, ostentando duas outras categorias de limites – os limites materiais e os limites circunstanciais – que fazem dela uma Constituição hiper-rígida.
Os limites materiais significam que a CRM não admite uma revisão ilimitada ou para todas as matérias, o que, na prática, poderia trazer o fácil resultado de uma nova Constituição, em vez da simples revisão da Constituição existente, apresentando-se assim como irrevisível um largo conjunto de doze matérias, consideradas como participando da essência do Direito Constitucional Moçambicano vigente, matérias que estarão sempre excluídas do respetivo âmbito regulativo:
– a independência, a soberania e a unidade do Estado;
– a forma republicana de Governo;
– a separação entre as confissões religiosas e o Estado;
– os direitos, liberdades e garantias fundamentais;
– o sufrágio universal, direto, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares eletivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local;
– o pluralismo de expressão e de organização política, incluindo partidos políticos e o direito de oposição democrática;
– a separação e interdependência dos órgãos de soberania;
– a fiscalização da constitucionalidade;
– a independência dos juízes;
– a autonomia das autarquias locais;
– os direitos dos trabalhadores e das associações sindicais;
– as normas que regem a nacionalidade, não podendo ser alteradas para restringir ou retirar direitos de cidadania.
Em termos procedimentais, a alteração destes limites coenvolve a realização, obrigatória e prévia, de um referendo constitucional, de natureza vinculativa: “As alterações das matérias constantes do número anterior são
obrigatoriamente sujeitas a referendo”.
A doutrina também discute, a este propósito, a existência de limites de revisão constitucional de natureza implícita, os quais não constam desta lista, bem como a eficácia meramente declarativa ou constitutiva destes limites.
V. E qual é a intensidade que estas cláusulas de limites materiais oferecem no seu intuito protetor? Estas disposições são imodificáveis ou apenas se pretende a proteção da essência dos regimes?
Evidentemente que não é legítimo pensar que, ao fim e ao cabo, a intensidade da qualificação de certa matéria como limite material de revisão constitucional se possa resumir a uma qualquer eficácia meramente política ou, sendo jurídica, de caráter geral, apenas no intuito, vago e dispersivo, de manter uma qualquer coerência global do subsistema constitucional considerado.
A reiteração, pela CRM, de que a existência de limites materiais expressos implica o “respeito” de certas matérias, bem como o facto de essas cláusulas operarem por referência a opções jurídico-positivas vertidas no texto constitucional, postulam um sentido medianamente vinculante, refreando as opções do legislador de revisão constitucional.
Por outra parte, a medida do grau de vinculação do legislador de revisão constitucional ao sentido normativo contido nas matérias que se encontram abrangidas por limites materiais, apesar de os mesmos serem formulados para todos os domínios por uma única verbalização (“têm de respeitar”), não se afere abstratamente, nem genericamente:
– não pode ser abstratamente porque tudo depende dos termos por que a CRM, no setor específico em causa, formalizou a vontade material constituinte;
– não pode ser genericamente porque, mercê da diversidade regulativa das matérias, é bem possível encontrar diferentes graus – uns mais intensos, outros menos intensos – de vinculação.
VI. Os limites circunstanciais proíbem a revisão constitucional na vigência dos estados de sítio e de emergência.
Não é difícil compreender o porquê desta limitação: colocando-se o Estado numa situação de anormalidade, com ameaças externas ou internas às instituições, não seria prudente desenvolver um procedimento de revisão constitucional, potencialmente muito permeável a essas pressões, assim se inquinando a expressão fiel e democrática da vontade dos representantes do povo.
É uma medida cautelar, visando resguardar o poder de revisão constitucional de manipulações que são sempre mais frequentes – embora não sejam inevitáveis – nestes períodos de conturbação institucional.