Apontamentos Regime Fundamental das Autarquias Locais

Regime Fundamental das Autarquias Locais

O dualismo órgãos deliberativos vs órgãos executivos

I. Quanto à estrutura orgânica das autarquias locais, a CRM toma posição: “As autarquias locais têm como órgãos uma assembleia, dotada de poderes deliberativos, e um executivo que responde perante ela, nos termos fixados na lei”.

Isto implica que a organização autárquica, com relevo constitucional, apoia-se num dualismo:

– um órgão deliberativo: “A Assembleia é eleita por sufrágio universal, direto, igual, secreto, pessoal e periódico dos cidadãos eleitores residentes na circunscrição territorial da autarquia, segundo o sistema de representação proporcional”;
– um órgão executivo: “O órgão executivo da autarquia é dirigido por um presidente eleito por sufrágio universal, direto, igual, secreto, pessoal e periódico dos cidadãos eleitores residentes na respetiva circunscrição territorial”.

II. A LAL, além da função de desenvolvimento da organização e funcionamento dos órgãos autárquicos, autonomiza a existência de um terceiro órgão, o órgão executivo singular: o presidente do município ou da Povoção.

É então de elencar os seguintes órgãos das autarquias locais moçambicanas, previstos na LAL:

– órgãos do município: Assembleia Municipal, Conselho Municipal e Presidente do Conselho Municipal;

– órgãos da povoação: Assembleia da Povoação, Conselho da Povoação e Presidente do Conselho da Povoação.

Esta orientação constitucional quanto à estrutura orgânica das autarquias locais leva à opção por um sistema de governo presidencial, pois que são duas eleições distintas – as eleições dos órgãos deliberativo e executivo singular – e em que cabe ao Presidente da autarquia, o único eleito no âmbito executivo, a designação dos demais membros do órgão executivo colegial, sem que haja quaisquer recíprocos mecanismos de responsabilidade política.

III. São raras as referências constitucionais ao estatuto dos titulares dos órgãos autárquicos, texto contitucional que nem sequer define a duração do respetivo mandato, que é de cinco anos, nos termos da LAL.

Para além do princípio da eletividade dos órgãos autárquicos, a CRM insere uma disposição especial, de tipo garantístico, a respeito da revogação e da renúncia: “A revogação e renúncia do mandato dos membros eleitos dos
órgãos autárquicos são reguladas por lei”.

A grande fatia desse regime foi estabelecida pela LETMOAL, diploma legal com 26 artigos, assim distribuídos:

– Capítulo I – Das disposições gerais
– Capítulo II – Das incompatibilidades e impedimentos
– Capítulo III – Dos deveres
– Capítulo IV – Dos direitos
– Capítulo V – Das disposições finais

A LETMOAL prevê a distinção entre os titulares e os membros dos órgãos das autarquias locais, nos seguintes termos:

– titulares: “São titulares dos órgãos das autarquias locais os que desempenham o cargo de presidente do conselho municipal ou de povoação e de presidente da assembleia municipal ou de povoação”;

– membros: “São membros dos órgãos das autarquias locais os que desempenham as funções de: a) membro da assembleia municipal ou de povoação; b) vereador”.

É muito relevante a afirmação de um princípio de responsabilidade civil e criminal no exercício das funções autárquicas: “Os titulares e os membros dos órgãos das autarquias locais são civil e criminalmente responsáveis pelos atos e omissões que praticarem no exercício das suas funções”.

Atribuições e competências

I. Desfrutando de poder administrativo na sua qualidade de entidades da Administração Pública Territorial Autónoma, o texto constitucional moçambicano vai ao ponto de dar uma indicação específica sobre as atribuições administrativas das autarquias locais: “O Poder Local tem como objetivos organizar a participação dos cidadãos na solução dos problemas próprios da sua comunidade e promover o desenvolvimento local, o aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da unidade do Estado Moçambicano”.

Este é um elenco que fica apreciavelmente extenso com a consideração da LAL, que também enumera as atribuições autárquicas:

– desenvolvimento económico e social;
– meio ambiente, saneamento básico e qualidade de vida;
– abastecimento público;
– saúde;
– educação;
– cultura, tempos livres e desporto;
– polícia da autarquia;
– urbanização, construção e habitação.

II. Quanto às competências administrativas das autarquias locais, o texto constitucional densifica algumas delas, dizendo genericamente a LAL que “As autarquias locais gozam de autonomia administrativa, finaneira e patrimonial”.

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Esta autonomia local, prevista na CRM e desenvolvida pela LAL, desabrocha nas seguintes modalidades:
– a autonomia regulamentar: “As autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio, no limite da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autoridades com poder tutelar”;

– a autonomia patrimonial, financeira (stricto sensu) e orçamental: “As autarquias locais têm finanças e património próprios”;

– a autonomia administrativa (stricto sensu): o poder para a prática de atos e contratos administrativos próprios.

Outros aspetos

I. Não sendo este o lugar para tratar exaustivamente as opções do Direito Autárquico de Moçambique, cabe ainda versar os seguintes tópicos:

– criação e extinção das autarquias locais;
– tutela administrativa;
– pessoal autárquico;
– finanças autárquicas.

II. A importância que o texto constitucional de Moçambique conferiu às autarquias locais também se afere pelo tema da sua criação e extinção.

Ainda que possa parecer um assunto menor, o certo é que a criação e a extinção das autarquias locais – e, por maioria de razão, a sua modificação – têm um impacto concreto na vida das populações que justifica um cuidado particular.

Ora, esse cuidado fica patente no facto de o texto da CRM considerar tais vicissitudes como do âmbito da intervenção legislativa: “A criação e extinção das autarquias locais são reguladas por lei, devendo a alteração da respetiva área ser precedida de consulta aos seus órgãos”.

Mas também se mostra na exigência de qualquer intervenção no mapa das autarquias locais dever ser feita com consulta prévia às populações respetivas através dos seus órgãos representativos.

III. O texto da CRM prevê o instituto da tutela administrativa que o Estado exerce sobre as autarquias locais, o qual assenta em critérios de legalidade, podendo também justificar-se em apreciações de mérito, sobre as decisões dos órgãos autárquicos, constituindo um dos seus controlos administrativos externos:

– fundamento de legalidade: “A tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação da legalidade dos atos administrativos dos órgãos autárquicos, nos termos da lei”;
– fundamento de mérito: “O exercício do poder tutelar pode ser ainda aplicado sobre o mérito dos atos administrativos, apenas nos casos e nos termos expressamente previstos na lei”.

A LTA concretiza múltiplos aspetos do regime da tutela administrativa, sendo de recordar os seguintes:

– modalidades de tutela: “O exercício da tutela administrativa do Estado compreende a verificação da legalidade dos atos administrativos das autarquias locais através de inspeções, inquéritos, sindicâncias e ratificações”;
– órgãos de tutela: “A tutela administrativa do Estado cabe ao Governo e é exercida pelo ministro que superintende na função pública e na administração local do Estado e pelo ministro que superintende no plano e finanças, no domínio das respetivas áreas de competência”;
– sanções: “A prática, por ação ou omissão, de ilegalidade grave no âmbito da gestão autárquica, a responsabilidade culposa pela inobservância das suas atribuições, a manifesta negligência no exercício das suas competências e dos respetivos deveres funcionais, constituem fundamento de perda de mandato do titular ou membro dos órgãos autárquicos, se tiverem sido praticadas individualmente, ou de dissolução do órgão, se forem imputadas a este”.

No entanto, sendo a tutela um instituto que vivifica uma relação jurídico-administrativa interinstitucional, ela acarreta uma inelutável compressão da autonomia local, estabelecendo a CRM um importante limite a essa compressão no caso de dissolução dos órgãos autárquicos: “A dissolução dos órgãos autárquicos, ainda que resultante de eleições diretas, só pode ter lugar em consequência de ações ou omissões legais graves, previstas na lei
e nos termos por ela estabelecidos”.

IV. O texto constitucional prevê a existência de pessoal próprio das autarquias locais, os quais representam os recursos humanos das autarquias locais enquanto organização administrativa: “As autarquias locais possuem quadro de pessoal próprio, nos termos da lei”.

Só que a abertura para uma lata autonomia no regime que lhe é aplicável fica comprometida quando o texto da CRM aproxima o pessoal autárquico do pessoal do Estado: “É aplicável aos funcionários e agentes da adminis-
tração local o regime dos funcionários e agentes do Estado”.

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V. Eixo muito relevante do êxito de qualquer reforma autárquica digna desse nome reside no grau de autonomia financeira (lato sensu) de que as autarquias locais possam beneficiar.

O texto constitucional é generoso, prevendo essa autonomia, nas modalidades de autonomia financeira (stricto sensu) e autonomia patrimonial: “As autarquias locais têm finanças e património próprios”.

Por outro lado, com o objetivo de diminuir a vaguidade daquela formulação, a CRM calibra a margem do legislador ordinário quando este procede à afinação dessa autonomia financeira: “A lei define o património das autarquias e estabelece o regime das finanças locais que, dentro dos interesses superiores do Estado, garanta a justa repartição dos recursos públicos e a necessária correção dos desequilíbrios entre elas existentes”.

A LFL afigura-se como um diploma legislativo estruturador das finanças locais, quer em termos de finanças públicas – ao definir “…o regime financeiro, orçamental e patrimonial das autarquias locais” – quer em termos tributários – porque este diploma também “…define o Sistema Tributário Autárquico”.

É um ato legislativo longo e de elevada complexidade técnica, com 87 artigos, distribuídos pelas seguintes matérias:

– Capítulo I – Disposições gerais
– Capítulo II – Orçamento e Património
– Capítulo III – Transferências Orçamentais
– Capítulo IV – Sistema Tributário Autárquico
– Capítulo V – Contabilidade Autárquica, Prestação de Contas e Inspeções
– Capítulo VI – Disposições gerais

Articulação da atividade autárquica com as autoridades tradicionais

I. Uma das maiores novidades das opções da CRM diz respeito à ampla incorporação do princípio do pluralismo jurídico, que já houve ocasião de mencionar no tocante às fontes de Direito, sobretudo a aceitação do costume.

Trata-se agora do reconhecimento de uma outra dimensão de tal princípio, simultaneamente funcional e estrutural, pela articulação que pode existir da atividade das autarquias locais com as autoridades tradicionais.

É nesse sentido que aponta a CRM, em preceito localizado no capítulo da Organização Social, dentro do Título IV da CRM, mas que tem na Administração Autárquica toda a sua pertinência: “O Estado define o relacionamento da autoridade tradicional com as demais instituições e enquadra a sua participação na vida económica, social e cultural do país, nos termos da lei”.

II. A LAL é sensível a esta orientação e fixa dois tipos de articulação da Administração Pública com as autoridades tradicionais:

– coordenação: “O ministro que superintende na função pública e na Administração Local do Estado coordenará as políticas de enquadramento das autoridades tradicionais e de formas de organização comunitária definidas pelas autarquias locais”;
– audição: “No desempenho das suas funções, os órgãos das autarquias locais poderão auscultar as opiniões e sugestões das autoridades tradicionais reconhecidas pelas comunidades como tais, de modo a coordenar com elas a realização de atividades que visem a satisfação das necessidades específicas das referidas comunidades”.

Outros diplomas posteriores concretizariam essas formas de articulação, estabelecendo normas sobre os direitos e deveres, critério de legitimação e modo de reconhecimento das autoridades tradicionais, cumprindo evidenciar:

– D no 15/2000, de 20 de junho;
– DM no 80/2004, de 14 de maio; e
– DM no 40/2006, de 8 de fevereiro.

III. Esta opção constitucional de Moçambique assume o importante significado de aprofundar a democracia social, na medida em que incorpora uma maior compreensão pelas idiossincrasias da cultura africana em geral e da cultura moçambicana em particular, como será certamente o caso da comunidades e poderes tradicionais.

Eis mais uma forma de autonomia da sociedade que assim se apresenta constitucionalmente protegida, numa solução equilibrada e amadurecida, entrelaçando-se com o exercício do poder administrativo formal.

O sentido deste reconhecimento é ainda maior se se observar o passado remoto e o passado recente de rejeição do papel insubstituível das comunidades tradicionais:

– passado remoto, porque as comunidades tradicionais foram manipuladas pelo poder colonial, que delas se serviu muitas vezes para continuar e consolidar o seu domínio político-social; e
– passado recente, porque as comunidades tradicionais não quadravam bem no princípio do centralismo democrático então reinante, surgindo como manifestações espúrias de uma vontade estadual de uniformização da sociedade em nome de um projeto coletivista.