A forma institucional de governo em geral
I. Um outro modo de ver a caracterização do poder político estadual, tal como ele se define num texto constitucional, é o da forma institucional de governo, conceito que designa a configuração da faceta simbólica do poder público, na sua simultânea relação com o exercício dos cargos públicos, maxime da Chefia do Estado.
Nestes termos, a forma institucional de governo não se refere tanto à repartição de poderes entre os diversos órgãos do Estado, ou às relações destes com outros organismos infraestaduais ou supraestaduais, como essencialmente à vertente institucional do poder político, lado a lado com a imagem que dele têm os cidadãos.
No entanto, é curial referir que a importância dogmático-constitucional da forma institucional de governo – outrora motivo de grandes disputas constitucionais – se esvaziou com o tempo, não se localizando já nos debates de primeira linha, depois da estabilização constitucional dos Estados dentro das tradições políticas que foram criando, bem diferentemente do que sucedeu nos tempos do Liberalismo oitocentista.
II. Não é recente, sendo ao invés bem antiga, a preocupação da Teoria e da Dogmática do Direito Constitucional na apresentação dos termos possíveis da classificação de forma institucional de governo, contrariamente do que sucede, v. g., com as formas políticas de governo.
É na Antiguidade Clássica que se encontraram as formulações mais recuadas, tanto em Platão como em Aristóteles:
– Platão distinguia as formas de governo em razão do número dos governantes, bem como da consideração ética do respetivo exercício, numa distinção entre boas e más formas de governo: monarquia ou tirania, conforme o poder de um só fosse conforme à lei ou atuasse sob o impulso da avidez ou da ignorância; aristocracia ou oligarquia, conforme o governo de vários respeitasse a lei ou não; democracia ou demagogia, conforme o governo do povo agisse segundo o Direito ou, em decadência, fosse o governo sem lei nem limite;
– Aristóteles, recebendo o legado platónico, apresentaria uma trilogia de formas de governo em razão do número de governantes, assim como em nome de considerações éticas no exercício do poder, dissociando o grupo das formas sãs do grupo das formas degeneradas: as formas sãs eram a realeza (monarquia), a aristocracia e a politeia (“regime constitucional”), quando procuravam o bem comum; as formas viciosas ou degeneradas eram a tirania, a oligarquia e a democracia (demagogia), procurando, não o bem comum, mas vantagens para os próprios titulares do poder.
III. Com a Idade Moderna, outro importante contributo foi dado por Nicolau Maquiavel, que, reapreciando estas anteriores classificações, simplificou-as e propugnou somente a distinção entre a monarquia (principado) e a república, sendo esta a mais recente identificação com o atual fenómeno da forma institucional de governo, dicotomia que ele próprio admitia fundar-se em três distintos critérios:
– no tocante ao número de governantes, a monarquia como poder de um só indivíduo, ao passo que a república seria o poder exercido por um colégio de personalidades, incluindo mesmo o colégio de todos os eleitores;
– no tocante à fonte do poder, a monarquia representaria o exercício do poder por direito próprio do monarca, ao passo que a república assentaria na ideia de que o poder pertenceria ao povo ou nação, sendo delegado no conjunto dos governantes;
– no tocante à simbologia da chefia do Estado, a monarquia corresponderia a um chefe de Estado hereditário, enquanto a república proibiria que isso sucedesse nesses termos.
IV. Caberia ainda a Charles de Montesquieu uma outra intervenção neste tema, propondo uma distinção tripartida, ainda com base em dois critérios que se aproximariam do atual e distinto conceito de forma política de governo, em termos bem diversos daqueles que seriam anteriormente experimentados:
– a monarquia como o governo de um só, segundo leis fixas e estabelecidas;
– a república como o governo de uma parte ou do todo, segundo leis gerais;
– o despotismo como o governo de um só, segundo leis arbitrárias.
V. Concretizando historicamente a relevância desta opção constitucional que qualquer Estado toma, sem esquecer a experiência adquirida nestes dois séculos de Constitucionalismo, concluiu-se que a forma institucional de governo se projetaria em três linhas regulativas fundamentais:
– na nomenclatura da realidade política estadual;
– no critério de escolha dos governantes em geral e na escolha do Chefe de Estado em particular; e
– na duração e na renovação dos cargos públicos em geral.
O resultado viria depois a simplificar-se através da apresentação dicotómica das possíveis formas institucionais de governo entre a monarquia e a república.
Esta síntese dos critérios que foram decantados subjacentemente à forma institucional de governo permitiu, ao mesmo tempo, remeter para a forma política de governo o problema mais vasto da liberdade no exercício do poder político, incluindo a consideração da relação entre governantes e governados.
VI. Importa finalmente destrinçar este sentido de “república”, na sua oposição à “monarquia”, do sentido etimológico clássico que durante muito tempo o acompanhou como respublica, equivalendo a “coisa pública”, com o significado da construção de um interesse público por contraponto aos interesses particulares.
Ora, nessa aceção, a respublica em nada se assimila à forma institucional republicana que se popularizaria a partir do Constitucionalismo Contemporâneo e antes se direcionou na construção da personalidade jurídico-institucional do Estado.
As formas monárquicas de governo
I. As formas institucionais monárquicas de governo foram as primeiras a desenvolver-se no Direito Constitucional e dominaram o panorama histórico até precisamente ao nascimento do Constitucionalismo e do Liberalismo.
A essência da monarquia radica no tipo de critério para a escolha do titular do cargo de Chefe de Estado, assentando no facto de, por força da aplicação daquele princípio monárquico, a respetiva sucessão ser de cunho hereditário, segundo os laços familiares, com ou sem lei sálica, de acordo com as preferências de linha e de grau.
A monarquia igualmente se pode conceber em relação a outros cargos públicos, agora já pelo princípio aristocrático, como sua extensão, pertinente à vontade régia de determinar a escolha de outros titulares de ofícios públicos, fundamentalmente no âmbito dos títulos nobiliárquicos.
Em formulações mais recentes, a monarquia ainda passou a compreender outras dimensões, como o exercício vitalício dos cargos públicos.
II. A despeito da facilidade da construção de um modelo mais ou menos uniforme, seria uma grande estultícia pensar que as formas monárquicas se pudessem explanar sem modelações específicas em função da respetiva aceitação num dado sistema político.
É o momento de esquematizar as que são determinantes para a respetiva compreensão:
– a monarquia romana: foi este o modelo vigente no primeiro período do Estado Romano, em que a sucessão do rex surgia determinada por um critério eletivo, este governando em conjunto com os outros poderes, legislativos e judiciais;
– a monarquia feudal: foi este o modelo que se viveu na Idade Média, em cujo enquadramento o rei governava no contexto de outros poderes, mas jamais com poderes amplos, sendo hereditária e situando-se na lógica do sistema político do feudalismo;
– a monarquia limitada: foi este o modelo que prevaleceu no período estamental do Estado Moderno, em que o rei, em recuperação de estatuto, se contrapunha às ordens sociais, com assento nos parlamentos, e de que foi grande exemplo a monarquia britânica no lento processo de afirmação dos diversos textos constitucionais que progressivamente lhe limitariam a atividade jurídico-pública;
– a monarquia absoluta: foi este o modelo da Idade Moderna tardia, em
que se verificou o crescimento dos poderes régios de intervenção, ao
mesmo tempo que se apagariam os outros poderes, no contexto do Estado absoluto;
– a monarquia cesarista: foi este o modelo especificamente vivido no dico-constitucional do “imperador dos franceses” se reivindicava de uma legitimidade popular, de tipo plebiscitário, não hereditária ou religiosa;
– a monarquia constitucional: foi este o modelo que permitiu a conciliação entre a antiga monarquia absoluta e o novo regime constitucional, sendo o texto da Constituição outorgado pelo rei, que assim aceita a limitação em que aquele sempre consiste, ao fixar as competências da instituição régia;
– a monarquia parlamentar: foi este o modelo que, numa fase mais amadurecida do Liberalismo e em que a monarquia passou a conhecer já os primeiros declínios, traduziu o compromisso entre a manutenção da instituição monárquica, cada vez mais contestada, e a sua crescente limitação procedimental e material em aplicação da teoria da separação dos poderes, realçando-se a posição do Parlamento como órgão representativo, por excelência, dos cidadãos;
– a monarquia simbólica (ou democrática)378: é este o modelo que atualmente predomina nos sistemas constitucionais democráticos, não possuindo o rei quaisquer poderes efetivos de intervenção política e remetendo-se ao lado simbólico, sobretudo preponderante em Estados com profundos problemas de identidade nacional.
III. Uma análise dos principais textos constitucionais estrangeiros mostra a importância da forma monárquica de governo, verificando-se que certos Estados permaneceram fiéis à sua tradição constitucional – como o caso do Reino Unido, que nunca abandonou a monarquia (com uma curta exceção) – ou que, pelo contrário, introduziram a monarquia em rutura com o passado, depois de a terem abandonado – foi o que fez recentemente a Espanha, cuja CE voltaria a consagrar a monarquia depois de a mesma ter sido abolida.
Em todos estes casos, num contexto de sistemas constitucionais monárquicos, os poderes régios são protocolares, ainda que com uma ou outra flutuação, mas dentro do modelo da monarquia constitucional simbólica.
As formas republicanas de governo
I. As formas institucionais republicanas de governo, contrariamente às formas institucionais monárquicas, são muito mais tardias e surgiram com particular vigor no contexto do Constitucionalismo, altura em que nasceriam outros esquemas de organização do poder público.
Mas esta afirmação do conceito de república não foi propriamente uma absoluta novidade, antes a revitalização de um conceito antigo, ainda que no novo prisma da limitação liberal do poder público.
II. Simplesmente, não deixa de ser curiosa a verificação de que o princípio republicano, afirmado também no ideário constitucionalista, foi dos que mais tarde – e mais paulatinamente – lograriam obter aceitação nos textos constitucionais que foram aparecendo um pouco por toda a parte.
E até podemos mesmo dizer que a ideia republicana, como o atesta a Alemanha ou o Portugal no século XX, correspondeu ao último dos princípios a penetrar nos textos constitucionais, pelo menos se comparado com os outros princípios na mesma altura defendidos doutrinariamente e depois normativamente consagrados.
III. A república representa, na sua essência, a aceitação de que a Chefia do Estado deve ser atribuída a um órgão, unipessoal ou colegial, que se mostre democraticamente legitimado, mais contra a conceção monárquica da chefia do Estado do que propriamente a favor de uma conceção estrita e certa da representação dessa função estadual.
A ideia republicana, se a princípio concentrada na chefia do Estado, acabou por alargar-se aos cargos públicos, impondo uma dimensão de democraticidade e de temporalidade no tocante ao respetivo exercício, cujo critério de escolha, no plano dos mandatos, se condiciona à vontade popular, além da necessidade de uma escolha para um mandato determinado, temporário e jamais vitalício.
De alguma sorte, esta dimensão da temporariedade dos cargos completa o princípio republicano no seu específico enfoque da chefia do Estado, porquanto amplia
as virtualidades do princípio democrático a outras paragens, confirmando, este aspeto, a proibição do princípio aristocrático.
A democraticidade e a temporariedade dos cargos públicos em Moçambique
I. No caso do Direito Constitucional Moçambicano, o princípio republicano concretiza-se logo no facto de haver um Presidente da República, democraticamente legitimado, com um conjunto de competências constitucionais efetivas.
A designação do Presidente da República é feita por eleição, para um mandato de cinco anos.
O Presidente da República dispõe de várias competências, para a prática de atos próprios e para a prática de atos relacionados com outros órgãos, além de ser o primeiro órgão de soberania a constar do Título VI do texto da CRM, com tudo quanto isso implica de protocolo de Estado.
II. Porém, o princípio republicano em Moçambique não se limita à chefia do Estado, pois que o mesmo possui uma aplicação geral, a começar pelo Título I da CRM, sobre os Princípios Fundamentais:
– ao nível da designação do Estado, Moçambique é por múltiplas vezes referido como “República”, avultando a primeira disposição constitucional, na qual se usa o termo “A República de Moçambique…”;
– ao nível dos símbolos nacionais, com alusão direta à “República”: “Os símbolos da República de Moçambique são a bandeira, o emblema e hino nacionais”.
III. O mesmo se diga do Capítulo I do Título VI da CRM, sobre o estatuto e eleição do Presidente da República, em cujos preceitos se frisa a importância do princípio republicano da perspetiva da temporariedade dos cargos públicos.
É este cargo político alvo de duas relevantes limitações, que se afiguram ser concretizações do princípio republicano:
– “O Presidente da República só pode ser reeleito uma vez”;
– “O Presidente da República que tenha sido eleito duas vezes consecutivas só pode candidatar-se a eleições presidenciais cinco anos após o último mandato”.
Só que estas disposições oferecem um sentido redundante, porque se diz o mesmo duas vezes: se só pode haver uma única reeleição, a mesma personalidade sempre poderia candidatar-se cinco anos após a conclusão do segundo mandato, pois que nesse caso já não se trataria de reeleição, por ter havido a interrupção numa série de eleições, que deixando de ser consecutivas deixam também de integrar o conceito de reeleição, que supõe esse carácter ininterrupto.
IV. O princípio republicano faz-se ainda presente no conjunto dos limites materiais da revisão constitucional, incorporando os domínios que definem a identidade do Constitucionalismo Moçambicano, delimitados no Capítulo II do Título XV do texto da CRM, alusivo às Garantias da Constituição.
A leitura do correspondente preceito constitucional não autoriza qualquer hesitação a respeito da sua consolidação como opção excluída do poder de revisão constitucional: “As leis de revisão constitucional têm de respeitar: (…) b) a forma republicana de Governo”.