Apontamentos O conceito de palavra em Mattoso

O conceito de palavra em Mattoso

Em Princípios de Linguística Geral, Mattoso, no capítulo sobre unidades significativas, coloca logo de início um problema fundamental relacionado ao conceito de palavra no estruturalismo:

Esta falta corriqueira de coincidência entre o elemento na fonação e o elemento na fala tem levado alguns linguistas a negarem que o vocábulo significativo, ou vocábulo propriamente dito, seja entidade natural linguística.

Tendem a considerá-lo qualquer coisa de convencional, imposto à nossa consciência pelas formalidades do ensino e da língua escrita.

O elemento significativo seria, a rigor, exclusivamente a própria frase. (Mattoso 1967: 86) Mattoso nega a adequação desta proposta, assumindo a posição de Saussure, segundo a qual apenas o vocábulo é puramente um elemento da língua.

Afirma, ao contrário, que é exatamente a falta de coincidência entre o vocábulo fonético e o vocábulo como elemento significativo que nos permite aceitar a realidade linguística do vocábulo: “relacionam-se entre si os elementos idênticos existentes em múltiplas frases, e desta comparação emerge o modelo mental chamado vocábulo, com individualidade ao mesmo tempo significativa e formal.

Em outros termos, a noção do vocábulo assenta na identificação parcial que se faz dentro da diferença global das frases.” (Mattoso 1967:87). Vemos, pois, que abraça o ângulo saussuriano.

Observa ele, entretanto, que este critério seria o mesmo para afixos e desinências; e passa, então, a estabelecer a necessária delimitação, que valida o raciocínio enquanto aplicado à especificidade da palavra, explicitando três diferenças básicas: A primeira é a colocação de Bloomfield de que a palavra, ao contrário dos afixos, ocorre isoladamente, constituindo uma forma livre.

A segunda é a mobilidade de posição (anteposição ou posposição), possível nos clíticos mas não nos afixos. E a terceira diferença, de caráter fundamental: o vocábulo “tem incontestável autonomia ou individualidade formal, porque não é condicionado pela forma particular do vocábulo a que se adjunge.”

É a partir dessa enumeração de factores de diferenciação que Mattoso propõe a sua divisão tripla, em substituição à proposta bloomfieldiana:

Chegamos assim a 3 tipos de formas:

  1. Forma presa, que só aparece ligada a outra e por ela condicionada;
  2. Forma dependente, que nunca aparece isolada, mas pode aparecer ligada a outra que não é aquela que a condiciona, quando entre ela e a sua condicionante se intercalam livremente outras formas;
  3. Forma livre, que aparece não raro isolada. (Mattoso 1967:88).

A preocupação de Mattoso em relação à descrição da língua portuguesa é dupla e a situação é mais complexa, dado o momento histórico de prevalência de uma tradição gramatical no ensino da língua, confrontado com a exigência de introdução da disciplina Linguística nos cursos de Letras e, portanto, na formação de todos os professores da área.

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Referindo-se à dicotomia saussuriana sincronia/diacronia e constatando a prioridade da linguística descritiva sobre os estudos históricos, Mattoso assim descreve a situação em relação à Língua Portuguesa em Problemas de Linguística Descritiva: A extrema preocupação de Mattoso em colocar os produtos da linguística descritiva a serviço do conhecimento da língua portuguesa leva ao primeiro problema fundamental encontrado em relação à palavra: o facto de que “toda e qualquer descrição da língua portuguesa leva em conta a existência do vocábulo”, embora não se tenha cogitado, nas abordagens tradicionais, de “explicar e claramente definir em que consiste ele” (Mattoso 1969: 34).

A falha, naturalmente, provém do facto de que nossas gramáticas tomam por base a língua escrita, na qual a palavra é definida pelos espaços em branco, conforme determinado pelo sistema gráfico.

Mattoso introduz, então, a distinção entre duas unidades diferentes sob o mesmo nome: o vocábulo fonológico, correspondente a uma “divisão espontânea na cadeia de emissão vocal”, e o vocábulo formal ou mórfico, “quando um segmento fônico se individualiza em função de um significado específico que lhe é atribuído na língua”, fazendo a crucial colocação de que, embora relacionadas, essas entidades podem não coincidir (Mattoso 1967:34).

No Dicionário de Linguística e Gramática, Mattoso define palavras como “vocábulos providos de significação externa, concentrada no radical; noutros termos, vocábulos providos de semantema”.

Nesta definição, introduz-se a preocupação do mestre com o problema terminológico: a utilização do termo vocábulo de um
ponto de vista mais técnico, reservando-se palavra para as unidades significativas.

Em Princípios de Linguística Descritiva, Mattoso esclarece o princípio norteador da divisão na emissão da cadeia da fala, afirmando que os vocábulos fonológicos não se separam por pausas na corrente da fala: “Em português, o vocábulo fonológico depende da força de emissão das suas sílabas. A verdadeira marca da delimitação vocabular é a pauta prosódica” (Mattoso 1969: 35-36).

Ou seja, na língua portuguesa o vocábulo fonológico é definido pela pauta prosódica, determinada pelo acento tônico.

Na verdade, a tarefa de Mattoso é complexa, na medida em que se trata não apenas de direcionar o estudo e ensino da língua para uma abordagem descritiva, em oposição a uma tradição que privilegia o estudo histórico, mas direcioná-lo a uma base oral em oposição a uma tradição de base escrita.

Ora, no caso da palavra, como ele salienta logo de início, esta abordagem instaura problemas de definição totalmente estranhos à abordagem anterior. Pois, como ele observa, “a língua escrita não tem em vista o vocábulo fonológico e sim o vocábulo mórfico ou formal.” (Mattoso 1969: 36).

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Mas o elemento fundamental para a definição do âmbito da Morfologia é o vocábulo formal, caracterizado por Bloomfield como uma forma livre mínima, ou a unidade a que se chega, quando não é possível nova divisão em duas ou mais formas livres. Daí a importância do conceito de forma dependente: “Conceitua-se assim uma forma que não é livre, porque não pode funcionar isoladamente como comunicação suficiente; mas também não é presa, porque é suscetível de duas possibilidades para se disjungir da forma livre a que se acha ligada” (Mattoso 1969: 37).

Com isto, o vocábulo se redefine como forma não presa mínima,  considerando-se como vocábulos formais tanto formas livres quanto formas dependentes; em consequência, incluem-se como vocábulos formais os artigos, preposições, conjunções e pronomes clíticos, que só ocorrem em função de outras formas, não podendo, portanto, ocorrer isoladamente, mas tendo mobilidade de posição em relação às formas das quais dependem.

É de se notar, portanto, a extrema adequação e elegância da proposta de Mattoso, que permite assim compatibilizar com a abordagem tradicional um critério descritivo estruturalista, através de uma pequena modificação, a caracterização de vocábulo mórfico que obedece também aos padrões do sistema gráfico do português.

Que se esclareça, contudo, que a análise não é apenas uma maneira alternativa de se colocar uma situação conciliatória entre a preocupação com o ensino descritivo e o realismo da necessidade do ensino tradicional da gramática: sobre este efeito desejável e conseguido, a classificação proposta, que redefine as unidades anteriormente propostas por Bloomfield, responde de maneira bem mais cabal à situação estrutural dos elementos envolvidos na língua portuguesa.

Definem-se assim como vocábulos formais, para Mattoso, a grande maioria dos vocábulos gráficos: nomes e verbos, mas também artigos, preposições, etc.; excetuando-se os pronomes clíticos, graficamente marcados como tais.

Os vocábulos formais têm em comum o facto de não serem formas presas, isto é, afixos; a definição de Bloomfield é tomada, portanto, do lado oposto, e interpretada não em seu aspecto sintático, mas reinterpretada em seu correlato morfológico: a rigidez da construção é característica das construções morfológicas, que envolvem radicais e afixos, todos formas presas, ou seja, formas que isoladamente não podem constituir enunciados.

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