As Matrizes Africanas e Europeias da Identidade Cabo-verdiana
Já foi referenciada em passagens anteriores (Cf:13) a heterogeneidade étnica e cultural dos grupos humanos (europeus e africanos) que, num esforço para sobreviverem às dificuldades, misturaram-se, étnica e culturalmente, originando assim, um povo com uma personalidade e identidade definida, fruto de um trabalho lento de cinco séculos de aculturação. Esta heterogeneidade harmonizou-se, formando um todo social no qual as reminiscências africanas e europeias são perfeitamente observáveis.
O legado africano
Da passagem e permanência de escravos africanos, ficou-nos, uma importante herança que não se pode reduzir a insignificantes salpicos perfeitamente superáveis e episódicos. “Na ternura, na minica excessiva, no catolicismo em que de se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra” (FREYRE, 2003: 367).
De todas as ilhas que compõem o arquipélago de Cabo Verde, é em Santiago, a primeira ilha a ser habitada, que a ligação étnica, histórica e cultural com a África é mais palpitante. Ou seja, é aí que os antropossociais africanos estão mais presentes. Relativamente à base biológica do homem cabo-verdiano, Almerindo Lessa, apoiado em elementos sero-antropológicos, afirma: “No ponto de vista biológico, a população cabo-verdiana é homogénea, que não há destrinças genéticas estatisticamente significativas entre as populações de Barlavento e Sotavento, que é uma população panmixa, e que, neste ponto de vista, se afasta notavelmente daquela que eu admito serem as suas raízes originais, porque não tem nem constituição predominante de homem português (…) nem tem a constituição genética predominante nos papeis da orla da Guiné”. (LESSA, 1959:120).
Pode-se concluir que, apesar de não ser predominante, o negro está geneticamente presente no homem mestiço cabo-verdiano.
Embora desprestigiada pela escravidão que impedia o negro de manifestar os seus valores culturais autênticos, em virtude da asfixia cultural a que foi submetido durante séculos pelo poder colonial, verifica-se um conjunto de traços e valores culturais que, apesar de terem sido adulterados, denunciam a sua remota origem africana. Alguns perfeitamente integrados na cultura nacional, outros figurando apenas na cultura regional de algumas ilhas.
Na gastronomia, a utilização do milho na confecção de alimentos, como a cachupa, prato verdadeiramente nacional, e outros derivados do milho como por exemplo as papas de milho, o ralão, o xerém, camoca, cuscuz, etc., são africanas.
Na musica, a Tabanca, durante muito tempo refugiada na clandestinidade devido às medidas repressoras exercias pelo regime escravocrata, é a única sobrevivente do culto africano organizado em Cabo Verde (Ilha de Santiago) e terá chegado a Cabo Verde com os primeiros negros da Guiné que povoaram a ilha de Santiago. É uma agremiação que une indivíduos com os mesmos usos, costumes, e língua, ou seja, é uma associação de socorros mútuos em caso de morte ou doença, apoio nas construções de casas dos associados, nas fainas agrícolas; o batuque é também uma realidade sociológica patente na ilha de Santiago, a única que conserva ainda hoje a sua essência africana. Resume-se num som produzido por uma cantadeira, por um grupo que faz o côro, e ritmado pela tchabeta, que consiste num ritmo marcado pelo bater nas coxas as palmas da mão, acompanhado pelo cimbó, instrumento de origem sudanesa; as superstições, que têm como figuras principais a Cacharrona e Canelinha, fantasmas ferozes com poderes para enlouquecer e até matarem; crendices na magia negra, em Curandeiros, em Bruxarias, as feitiçarias; as danças eróticas típicas nos festejos de São João e Santo António a que dão o nome de “ Colar Sanjon (colar no pico), ou sobar14, que consiste numa dança ao ritmo do tambor e dos apitos, com homens e mulheres de braços abertos ou com mãos nas ancas, se chocam, procurando o contacto dos sexos.
Directamente associado ao regime alimentar dos cabo-verdianos, que é à base de cereais (milho e feijões), temos o Pau e o Pilão usados para a moagem e descasque de cereais. Foram trazidos para Cabo Verde pelos escravos da costa da Guiné; o costume milenar de transportar os filhos nas costas; a nossa rica tradição oral, consubstanciada nos mitos, estórias, adivinhas, provérbios, bruxarias, feitiçarias encantamentos, o mau-olhado, remédios, resguardos do corpo, orações de defesa etc.,
Entretanto, os costumes africanos transplantados acabaram por perder muito da sua pureza original, sob influência da civilização ocidental que se impunha pela sua evidente superioridade.
O legado português
Dos traços da cultura portuguesa com mais presença na cultura cabo-verdiana, resultante da pressão cultural encetada pela dominação colonial, podem-se apontar: no plano urbanístico e estético – arquitectónico, visível nos sobrados, nas casas coloniais, nas igrejas e Câmaras Municipais, bem como a disposição das praças e ruas com calçadas portuguesas e nomes como Sacadura Cabral, Gago Coutinho, Camões etc; na habitação rural feita de pedra e barro, ao estilo das rústicas habitações do interior de Portugal; no domínio da produção e expressão literária, verifica-se alguma adaptação à literatura portuguesa, quer a nível da ficção, como da poesia; nos monumentos, estátuas e bustos construídos em homenagens às grandes personalidades lusas; nas práticas religiosas, nas quais irrompe a hegemonia do catolicismo português, através das procissões de Páscoa, Nossa Senhora da Graça, nos festejos dos Santos populares (Santo António, São João); na estrutura familiar que obedece aos padrões da civilização lusa, isto é, acentuadamente patriarcal e monogâmica; no sistema de trabalho rural e regime de propriedade (as técnicas de cultivo, o regime de arrendamento ou de parceria, o binómio proprietário rendeiro). Podem-se referir ainda como tradição que veio de Portugal a corrida de navios realizada na época dos festejos dos santos populares em que um grupo de pessoas vestidas de marinheiros, e transportando réplicas de navios feitos de fibra, ao som de tambores e apitos, imitando o bordejar de um barco, invocando o regresso ou a saída das caravelas portuguesas da época dos descobrimentos; as corridas de argolinha e as corridas de cavalos, reminiscência dos torneios medievais; e como não podia deixar de ser, a incontornável presença da língua portuguesa no sistema morfológico e lexical do crioulo cabo-verdiano. Estas são algumas das âncoras culturais lusas mais visíveis na cultura cabo-verdiana. […].
A cultura cabo-verdiana resulta assim, de uma heterogeneidade de elementos rácios (africana e europeia) que se harmonizaram dando origem a uma identidade própria e específica. Isto é, do contacto das culturas negras – foram várias as etnias que participaram no processo da formação cultural cabo-verdiana – com as europeias, surgiu a civilização mestiça cabo-verdiana.
(…) o processo aculturativo ocorrido em Cabo Verde desde os primórdios da colonização, resultante do encontro e do cruzamento da cultura europeia com a variedade cultural dos escravos, (provenientes da longa costa da Guiné: Mandingas, Balantas, Fulas, Jalofos, Bijagós, Felupes, Pepeis, Quissis, Bambaras, Bololas, Manjacos etc.), possibilitou a “troca” ou a interiorização de elementos culturais alheios. Inseridos numa nova paisagem, estes elementos, antes estranhos, metamorfosearam-se dando origem a uma nova identidade cultural – o embrião da futura nação cabo-verdiana.
Convém salientar que, na actualidade é de todo impossível discernir, na compósita sociedade cabo-verdiana, os traços identitários dos grandes grupos étnicos provenientes da costa da Guiné, devido a uma intensa miscigenação cultural das diferentes étnias.