O quadro geral das funções e dos atos jurídico-públicos
I. A estrutura do poder público – além dos órgãos que expressam a vontade das respetivas entidades, o Estado e outras pessoas coletivas públicas – inclui os atos jurídico-públicos, que traduzem a concretização prática dessa vontade, assim ela se tornando juridicamente relevante.
Os atos jurídico-públicos são a expressão concreta das funções jurídico-públicas, as quais designam as atividades que os órgãos públicos desenvolvem, dentro de um complexo de características mais vastas, sendo vários os atos que explicitam uma mesma função jurídico-pública.
Só que não parece ser possível dividir, antes se devendo unir, a definição de cada função jurídico-pública com as modalidades diferenciadas de atos jurídico-públicos que pertencem a cada uma delas.
II. Como a evolução do Estado Constitucional mostrou, o quadro atual das funções jurídico-públicas – o mesmo acontecendo com os correspondentes atos jurídico-públicos – é substancialmente diverso daquele que foi idealizado por John Locke e Charles de Montesquieu e logo a seguir posto em prática nos textos constitucionais do século XIX.
As mudanças que ocorreram na passagem do século XIX ao século XX assentaram em muitas causas, tendo por resultado a multiplicação das funções jurídico-públicas, ao mesmo tempo que se esbateram as separações outrora rígidas entre elas.
III. Contudo, não obstante essas mudanças, a divisão funcional corrigida ainda permanece válida, sendo de indicar quatro critérios de diferenciação:
– o critério material: que atende ao conteúdo e respetivos efeitos, assim como aos objetivos a alcançar com o seu exercício;
– o critério formal: que atende à forma e ao procedimento adotados na sua formação e extrinsecação;
– o critério orgânico: que atende ao órgão respetivo, bem como ao modo de designação dos seus titulares;
– o critério hierárquico: que atende à posição tomada no escalonamento da Ordem Jurídica.
IV. Do nosso ponto de vista, a explanação das funções e dos atos jurídico-públicos afeiçoa-se ao seguinte quadro:
– a função constitucional e os atos constitucionais;
– a função legislativa e os atos legislativos;
– a função política e os atos políticos;
– a função administrativa e os atos administrativos;
– a função jurisdicional e os atos jurisdicionais.
V. Os atos jurídico-públicos, que se inserem numa dada função jurídico-pública, são manifestações da vontade funcional da pessoa coletiva que através do respetivo órgão a produz com base num conjunto próprio de características.
Os atos jurídico-públicos contêm uma estrutura específica, na qual sobressaem, da perspetiva da sua relevância para o Direito Constitucional, diversas dimensões:
– os pressupostos: significam a necessidade de se encontrarem reunidas certas condições para a sua promanação;
– os elementos: significam as peças que são constitutivas dos atos jurídico-públicos, sendo-lhes essenciais;
– os requisitos: significam o grau de conformidade que cada ato jurídico-público deve ostentar em relação ao respetivo padrão de exigência, constitucional e legal.
VI. Os elementos dos atos jurídico-públicos são os mais importantes na identificação da sua estrutura constitutiva, sendo de elencar as seguintes categorias, na senda da construção geral relativa aos atos jurídicos que aqui faz sentido retomar:
– os elementos subjetivos: a vontade do órgão autor do ato, que o imputa à respetiva pessoa coletiva;
– os elementos objetivos: o objeto e o conteúdo do ato, este corporizando os efeitos que naquele se projetam;
– os elementos formais: a forma de exteriorização do ato e o procedimento adotado na sua elaboração;
– os elementos funcionais: o objetivo a prosseguir, bem como a motivação concreta da celebração do ato.
VII. Os pressupostos dos atos jurídico-públicos representam as condições prévias que importa dar por verificadas para que o ato se possa formar:
– o pressuposto subjetivo do órgão autor do ato, uma vez que a vontade que nele se expressa tem uma autoria; e
– o pressuposto objetivo da competência para a prática do ato, condição indispensável para que o ato seja validamente produzido.
A função constitucional e os atos constitucionais
I. A função constitucional é a função mais importante porque corresponde, na sua radicalidade, ao poder constituinte, que é inerente – e que também o qualifica – ao Estado na sua veste de entidade dotada de poder público máximo, ou seja, um poder soberano na Ordem Interna.
Do ponto de vista material, traduz uma ordenação normativa da Ordem Jurídica global, com propósitos de durabilidade, de acordo com a amplitude própria do poder constituinte que lhe subjaz, sendo em democracia fundado numa legitimidade democrática, representativa ou direta.
Só que nem sempre a função constitucional espelha a produção do poder constituinte, podendo apresentar-se num modo menos drástico, em perspetiva complementar em relação àquele poder público, numa configuração de poder já constituído e por aquele balizado.
II. Esta diferença igualmente se espelha nos atos constitucionais que formalizam a função constitucional, apresentando-se pelo menos com três diferentes intensidades:
– os atos constituintes, como são as Constituições, atos primários de fundação da Ordem Jurídica Positiva, assim como por vezes do próprio Estado, dos quais derivam todos os restantes atos jurídico-públicos;
– as leis de revisão constitucional, como atos legislativos de valor constitucional, subordinados à primariedade da Constituição, mas que podem modificar, suprimir e acrescentar preceitos secundários nela insertos, ainda que se lhe subordinem nos seus aspetos essenciais;
– as declarações do estado de exceção constitucional, que são atos jurídico-públicos editados no condicionalismo do estado de exceção constitucional, com uma feição temporária, mas que bloqueiam ou alteram uma parcela significativa da Constituição, com o precípuo objetivo de restaurar a normalidade constitucional.
III. A importância do estado de exceção constitucional, na perspetiva do poder de exceção que lhe subjaz, pressupõe a sua melhor caracterização como realidade relevante no plano das funções constitucionais públicas.
É, por um lado, um poder do Estado que se define como sendo um poder constituído, ao cumprir, escrupulosamente, o figurino da respetiva densificação constante do texto constitucional, na veste de emanação do respetivo poder constituinte, apenas transformando a Ordem Constitucional nessa exata medida. Do abuso deste poder para lá daqueles limites resulta o desvirtuamento da sua natureza. O exercício do poder de exceção jamais se pode reconduzir à manifestação do poder constituinte porque não só se situa, no plano do regime, num quadro constitucional previamente traçado, mesmo nos casos mais sérios de ampla transformação da Ordem Constitucional, como existem sempre limites – materiais e organizatórios – que impedem que o fundamento desse poder deixe de ser a própria Constituição.
É, por outro lado, um poder do Estado que muito dificilmente se equipara às suas funções clássicas, que se organizaram sem ter presente a categoria da Constituição, tendo que ver apenas com o plano das funções constituídas permanentes. Movendo-se no texto constitucional que as conforma, é de diferente intensidade o poder de alteração da Ordem Jurídica que se lhes reconhece em comparação com a eficácia constitucional que se atribui ao poder de exceção, de intensidade e gravidade muito superiores.
A função legislativa e os atos legislativos
I. A função legislativa, não sendo a mais alta função jurídico-pública, é provavelmente a mais sedimentada de todas, dando conta da preocupação quotidiana pela ordenação do Estado e da Sociedade.
A função legislativa tem tido, regra geral, uma consistência normativa, ocupando-se da definição do interesse geral, a partir de órgãos político-democráticos, direta ou indiretamente.
A passagem ao Estado Social e ao Estado Pós-Social relativizou esta característica, não sendo raro o aparecimento de atos legislativos sem teor normativo.
II. A expressão da função legislativa surge nos atos legislativos, com uma forma de ato legislativo, sendo possível que isso suceda em dois casos distintos na CRM:
– as leis comuns e as leis de autorização legislativa: da competência da Assembleia da República, apresentando-se como a categoria residual da função legislativa parlamentar;
– os decretos-leis: da competência do Governo, manifestando-se nos domínios em que houve prévia autorização legislativa parlamentar.
A função política e os atos políticos
I. A função política designa, de uma forma lateral, a atividade jurídico-pública que se prende com a definição do interesse geral, nos casos em que a mesma não possa ser desempenhada pelas outras funções e atos jurídico-públicos.
Do ponto de vista material, do mesmo modo a função política se associa à definição do interesse geral, protagonizada pelos principais órgãos públicos dotados de legitimidade democrática, ao mesmo tempo que se rejeita a forma de ato legislativo.
A função política, não tendo pertencido ao núcleo doutrinário essencial da separação de poderes, foi posteriormente acrescentada, mas tem vindo a desenvolver-se em diversas direções, nela avultando inúmeras preocupações, como a do controlo do poder público.
II. A manifestação da função política afere-se pela existência de uma gama muito diversificada de atos políticos:
– os atos eleitorais: as eleições expressam uma vontade do colégio eleitoral quanto à designação de pessoas para a titularidade dos cargos postos a votação popular, num caso em que o povo é autor de um ato jurídico-público;
– os atos referendários: os referendos igualmente expressam a vontade do conjunto de cidadãos, desta feita sobre questões que são colocadas à sua decisão vinculativa;
– os atos internacionais: as convenções internacionais, tratados e acordos, assim como outras fontes e atos de Direito Internacional Público, que se integram no Ordenamento Jurídico;
– os atos governativos: significam uma multidão de atos que dizem respeito à dinamização do sistema de governo, como as moções parlamentares, os atos de nomeação, demissão e dissolução, para além de outros atos de cunho normativo, mas sem forma legislativa.
A função administrativa e os atos administrativos
I. A função administrativa representa uma atividade pública de natureza secundária, que se relaciona com a satisfação das necessidades coletivas do Estado-Sociedade.
A função administrativa prende-se com um segundo nível da definição do interesse público, da responsabilidade de organismos administrativos, que não são, como tendência geral, democraticamente legitimados.
Esta função jurídico-pública tem a inegável vantagem da maior proximidade aos cidadãos, que através dela veem a satisfação das suas necessidades coletivas, assim como a resolução dos problemas que à governação pública cabe.
II. A função administrativa concretiza-se pela produção dos atos administrativos, os quais podem ser exemplificados do seguinte modo:
– os regulamentos administrativos: representam a vontade de estabelecer uma ordenação normativa a respeito da organização e funcionamento das instituições administrativas, ou sobre um domínio específico da atividade dos administrados, com caráter permanente e geral;
– os atos administrativos: são decisões concretas e individuais tomadas pela Administração Pública, em aplicação das leis e dos regulamentos administrativos, e que definem a situação jurídica dos administrados;
– os contratos administrativos: são acordos de vontade entre duas ou mais partes, articulando direitos e deveres dos contratantes na prossecução do interesse público, definidos no âmbito da atuação da Administração Pública.
A função jurisdicional e os atos jurisdicionais
I. A função jurisdicional completa o arco das funções jurídico-públicas e designa a aplicação do Direito previamente definido, a partir de órgãos dotados de independência e de imparcialidade, resolvendo os litígios que são levados à sua decisão.
Nem sempre a função jurisdicional compete aos órgãos judiciais, como se pode entrever da possibilidade de os tribunais arbitrais agirem como organismos jurisdicionais, ainda que não integrados na função judicial pública.
Por outro lado, o desempenho da função jurisdicional não é só aplicativa ou não normativa: pode haver casos de criação e de normatividade jurisdicional.
II. Os atos jurisdicionais são suscetíveis de diversas modalidades, tal o leque de possibilidades para o respetivo exercício:
– as decisões finais e os despachos interlocutórios: decisões finais porque põem fim ao litígio em cada tribunal e decisões interlocutórias no caso de serem decisões tomadas no seio da tramitação processual;
– as sentenças e os acórdãos judiciais: aqueles são os atos finais tomados pelos tribunais singulares, quando têm um único juiz como titular, ao passo que estes são os atos finais tomados pelos tribunais coletivos, quando têm uma pluralidade de juízes na respetiva titularidade.