A função legislativa
I. No exercício do poder público que está atribuído ao Estado, bem como às demais entidades que eventualmente possam partilhar a mesma função do Estado, sobressai, pela sua importância, a função legislativa, a qual se pode definir sob quatro perspetivas:
– no plano material: a função legislativa expressa a definição de grandes opções da comunidade e do Estado, numa ampla descoberta do interesse geral;
– no plano formal: a função legislativa exerce-se com plena liberdade de opção, respeitando as características típicas do pluralismo e da publicidade que lhe são inerentes;
– no plano orgânico: a função legislativa é diretamente dependente do povo na perspetiva da sua legitimação democrática;
– no plano hierárquico: a função legislativa é localizada logo abaixo da função constitucional, exprimindo a ordenação conjuntural da sociedade.
II. Porém, falar da função legislativa só se percebe integralmente quando ela surge confrontada com as outras funções do Estado, delas se diferenciando:
– a função constitucional, por intermédio da qual se estrutura o estalão supremo da Ordem Jurídica, quer originariamente na produção de uma nova Constituição, quer supervenientemente quando ocorram intervenções posteriores que a alterem;
– a função política, sendo esta bastante próxima da função legislativa, mas dela se separando por não originar atos com forma de lei e por normalmente não oferecer conteúdo normativo, relacionando-se com a dinâmica interna do sistema político;
– a função administrativa, que traduz a definição do interesse público mais específico das pessoas, na satisfação das suas necessidades materiais essenciais, de segurança, cultura e bem-estar, ora pela produção de atos jurídico-normativos, ora pela produção de atos jurídicos não normativos, ora pela produção de atos materiais;
– a função jurisdicional, que se caracteriza pela aplicação do Direito, numa ótica de composição de litígios e segundo uma lógica de independência da judicatura relativamente a outros órgãos.
III. Dando-se conta da importância da função legislativa e dos atos legislativos, a CRM fez rodear o desempenho legislativo de alguns importantes atributos, de que cumpre evidenciar o princípio da competência, o princípio da tipicidade e o princípio da vinculação funcional.
O princípio da competência diz-nos que os órgãos em certo momento competentes para a emissão de atos legislativos não o podem deixar de ser por simples vontade sua, ou através de um mecanismo de delegação. As alterações de competência têm de estar previstas constitucionalmente e não são permitidas vicissitudes de competência fora dessas condições.
O princípio da tipicidade, que se refere às formas de lei, fixa a necessidade de se conferir força legal apenas aos atos que, como tal, são constitucionalmente considerados, nunca podendo qualquer outro ato, para si próprio ou para terceiro, arrogar-se de possuir uma eficácia jurídica diversa daquela definida pela CRM para tal tipo de ato jurídico-público.
O princípio da vinculação funcional implica que, apesar do igual posicionamento hierárquico, certos atos legislativos poderão prevalecer sobre outros em razão da especial função que desempenham, não podendo ser revogados sem que o ato revogando os substitua nessa mesma função ordenadora.
IV. Uma das principais questões que tem acompanhado a caracterização da função legislativa é saber se os respetivos atos devem necessariamente possuir normatividade ou se, pelo contrário, são admissíveis manifestações legislativas não normativas, como as leis-medida.
Eis a questão da distinção entre a lei em sentido formal e a lei em sentido material, que remonta à construção que Paul Laband elaborou para solucionar a crise orçamental prussiana entre 1860 a 1866, defendendo que o sentido material de lei continha um conteúdo de regra de Direito, ao passo que a lei formal apenas se definiria pela dimensão orgânico-procedimental.
Qualquer resposta cabal só pode ser dada depois da análise cuidadosa dos elementos de Direito Constitucional Positivo Moçambicano que sejam disponibilizados. Após essa leitura, conclui-se que são vários os índices que apontam para, em certos usos da legislação, ela dever ser normativa, cumprindo frisar o mais importante de todos: a restrição de direitos, liberdades e garantias, que se realiza por ato legislativo, exigindo-se que o mesmo revista “…caráter geral e abstrato…”.
Quedam-se por aqui as indicações seguras, pelo que não se pode erigir a normatividade a característica geral dos atos legislativos. As leis-medida são, assim, legítimas, mas na condição de os respetivos efeitos individuais e concretos não questionarem os princípios constitucionais aplicáveis, sobretudo o da igualdade, embora este problema não lhes seja específico, a tal exame se sujeitando toda e qualquer manifestação de poder público infraconstitucional.
V. Outro dos problemas fundamentais na definição da função legislativa refere-se à existência ou não de uma separação material frente às outras funções jurídico-públicas, principalmente a função administrativa.
Por outras palavras: pergunta-se se há uma reserva material das diversas funções jurídico-públicas, num debate que se tem essencialmente centrado entre a função legislativa e a função administrativa.
Em certas matérias, o texto constitucional procede a uma caracterização material da função legislativa e da função administrativa, indexando atos com esta designação a certas disciplinas jurídicas que importa fazer, sendo de referir dois casos, um na especialidade e o outro na generalidade:
– na especialidade, está a restrição legislativa de direitos, liberdades e garantias, pois que se sabe que esta disciplina jurídica restritiva implica a intervenção legislativa;
– na generalidade, nos casos de reserva de competência legislativa parlamentar, também implicitamente se impõe uma reserva de ato legislativo, devendo essas matérias ser disciplinadas por um ato com aquela natureza.
No mais, contudo, não se assinalam quaisquer linhas materiais diferenciadoras entre a função legislativa e a função administrativa: de um modo geral, e à exceção daquelas reservas enunciadas, em domínios mais ou menos amplos,
não há uma reserva geral material da função legislativa.
Por outra parte, a reserva da função administrativa nunca é como tal admitida no plano constitucional, embora se assinale que a função administrativa beneficia, no plano material, da proteção dada pela racionalidade da separação de poderes, bem como por estar dependente do princípio da legalidade.
A reserva de lei e a competência legislativa
I. A reserva de lei implica uma específica colocação dos atos legislativos nos diversos lugares possíveis da constelação de atos jurídico-públicos.
O sentido fundamental da consagração da reserva de lei acarreta a abolição de outras modalidades de atos jurídico-públicos para levar a cabo a disciplina jurídico-normativa que se pretende: se há reserva de lei, num dado assunto, não há lugar à intervenção de atos jurídico-públicos de outra natureza.
Consequentemente, a adoção da reserva de lei para certo regime jurídico elimina a possibilidade de esse mesmo regime jurídico ser normativamente versado pelo recurso a outras instâncias normativas, incluídas noutras funções jurídico-públicas.
Neste contexto, a vertente mais impressiva da reserva de lei é a da sua relação com os atos da função administrativa, mais exatamente, os regulamentos administrativos.
II. A reserva de lei pode igualmente operar dentro dos específicos atos legislativos que o sistema constitucional concebe, destrinça tanto mais importante quanto mais pluralista for a constelação de atos legislativos admitida, aparecendo neste caso a reserva de lei como uma reserva de certas leis ou de certos atos legislativos.
Daí que a reserva de lei, na Teoria do Direito Constitucional, se subdivida noutras tantas modalidades possíveis, conforme os critérios operativos para gizar as suas mais importantes contraposições:
– reserva de Constituição e reserva de lei;
– reserva de lei total e reserva de lei parcial;
– reserva de lei nacional e reserva de lei não nacional; e
– reserva de lei parlamentar e reserva de lei governamental.
III. Dentro da distribuição orgânico-funcional que a CRM desenhou, interessa averiguar os termos por que aquele texto constitucional levou a cabo a distribuição da competência legislativa, sendo certo que já se percebeu que os atos legislativos não derivam de um único órgão jurídico-público.
A competência legislativa designa a possibilidade de os órgãos públicos poderem emitir atos legislativos, ao abrigo da função legislativa que são chamados a partilhar.
IV. São vários os critérios que permitem identificar as diferentes modalidades de competência legislativa, tal como elas se apresentam relevantes no Direito Constitucional Moçambicano:
– o critério da titularidade pelo órgão a quem é atribuída: competência legislativa parlamentar e competência legislativa governamental, conforme o órgão seja a Assembleia da República ou o Governo;
– o critério da atribuição exclusiva ou concorrente: competência legislativa exclusiva, competência legislativa delegável e competência legislativa concorrente, conforme seja apenas o seu titular a desenvolvê-la, possa permitir que outro órgão, por sua decisão, a exerça ou esteja em condomínio com outros órgãos;
– o critério da definição constitucional por alusão ao órgão que a titula: competência legislativa genérica, competência legislativa específica e competência legislativa residual, conforme a competência seja definida com recurso a conceitos gerais, seja definida em razão de certos assuntos tipificados ou seja atribuída no caso de certo assunto não pertencer, daquela perspetiva, a outro órgão;
– o critério da intensidade da sua expressão: competência legislativa total, competência legislativa geral, competência legislativa principial e competência legislativa quadro, conforme inclua tudo aquilo que se refere à matéria abrangida, se insira no âmbito da definição de um regime geral, apenas respeite às bases de um regime jurídico ou compreenda a produção de leis-quadro;
– o critério do circunstancialismo da produção: competência legislativa ordinária e competência legislativa extraordinária, conforme se exerça no normal quotidiano da atividade jurídico-pública dos órgãos legislativos ou surja num circunstancialismo de urgência procedimental.
V. A distribuição da competência legislativa – que se plasma na produção de diversos atos legislativos, em aplicação de alguns destes critérios classificatórios – fica melhor compreendida se lançarmos mão da tipologia da competência legislativa prevista no Direito Constitucional de Moçambique, apartando essas competências em razão de um fundamental critério de titularidade das mesmas, numa distribuição horizontal, visto que a ausência de regionalismo político-legislativo ou sequer de federalismo jurídico impede uma repartição distribuição vertical das mesmas.
A distribuição horizontal acontece dentro de cada pessoa coletiva com competência legislativa, sendo viável aí vislumbrar diversas possibilidades de repartição de tarefas no plano da legiferação.
VI. É na perspetiva da distribuição horizontal que, dentro do Estado, a CRM concebe a atribuição da competência legislativa – ou seja, a faculdade de produzir atos legislativos – a dois dos órgãos de soberania: a Assembleia da República e o Governo.
A partilha da função legislativa por estes dois órgãos sugere a sinalização de várias categorias de competência legislativa:
– a competência legislativa parlamentar exclusiva: o conjunto das matérias em que só a Assembleia da República pode legislar, nelas se encontrando o núcleo mais relevante da legiferação que se concebe, em homenagem à importância político-legislativa deste órgão;
– a competência legislativa parlamentar delegável: o conjunto das matérias em que a Assembleia da República pode legislar, mas em que igualmente pode optar por delegar a respetiva legiferação no Governo, através de uma auto-
rização legislativa;
– a competência legislativa governamental delegada: o conjunto das matérias em que o Governo legisla, mas sob autorização parlamentar.
Diferentemente do que sucede noutros sistemas político-constitucionais de língua portuguesa, não parece que a CRM consinta na existência de uma qualquer área de competência legislativa concorrente entre a Assembleia da
República e o Governo, a este apenas cabendo uma intervenção legislativa tipificada autorizada, e para aquela ficando a competência legislativa genérica residual.
Eis um tema árduo e complexo, mas parece ser esse o melhor entendimento tomando presente o facto de o Governo poder beneficiar de autorizações legislativas sobre outras matérias que integram uma competência legislativa parlamentar genérica, e não específica, pelos vistos a CRM reservando sempre à Assembleia da República a competência legislativa primária.
Isso também se deduz do preceito constitucional que nem sequer considera que o Governo tenha competência legislativa própria sobre a matéria da sua organização e funcionamento, dado que nesse tópico o Governo tem apenas o poder de iniciativa legislativa, e não o poder de decisão legislativa: “É da exclusiva iniciativa legislativa do Governo a matéria respeitante à sua própria organização, composição e funcionamento”.
Claro que esta conclusão pode ser abalada por a CRM expressamente atribuir à Assembleia da República uma competência legislativa primária geral, mas em termos nucleares, e não tanto totais: “Compete à Assembleia
da República legislar sobre as questões básicas da política interna e externa do país”.
Simplesmente, a concatenação deste preceito com a norma que permite autorizar o Governo a legislar em quaisquer outras matérias parece pretender reservar ao Parlamento, embora com esta faculdade de delegação, a totalidade daquele poder legislativo primário.
Por outro lado, aquela restrição à legislação sobre “as questões básicas” também não é coincidente com a definição da competência legislativa da Assembleia da República quando lhe confere a função de determinar “…as normas que regem o funcionamento do Estado e a vida económica e social…”.
VII. Indo um pouco mais longe na densificação da competência legislativa constitucionalmente prevista, cumpre discretear sobre a relevância dada à consagração da competência legislativa extraordinária: é o estado de necessidade legislativa, sendo certo que pode ocorrer uma situação em que os termos por que a competência legislativa se encontra estabelecida não sejam satisfatórios do ponto de vista do apetrechamento do poder público para a prossecução do interesse geral.
Boa parte dos problemas suscitados pela necessidade constitucional podem ser reconduzidos ao estado de exceção constitucional, o qual pretende responder com uma alteração radical da Ordem Constitucional, motivada por razões de crise institucional, mas em que se visa, em último termo, a sua absoluta preservação, parcialmente a excecionando durante um período transitório.
Nem todas as questões que se devem discutir no âmbito do estado de exceção constitucional podem ser cabalmente resolvidas, havendo duas razões para tal suceder:
– por um lado, o facto de o estado de exceção constitucional, nos termos em que o mesmo está construído, ser raramente sensível a uma preocupação de urgência procedimental, numa óbvia e – acima de tudo – complicada limitação da eficiência deste instrumento de defesa extraordinária da Constituição;
– por outro lado, o facto de o estado de exceção constitucional ser apenas uma pequeníssima parte dos problemas a resolver pela necessidade legislativa em geral, que se apresenta imperiosa em muitas outras circunstâncias que nada têm que ver com as situações de anormalidade constitucional que subjazem ao estado de exceção constitucional.
E os exemplos possíveis são bem elucidativos, como este: imaginemos que, durante as férias parlamentares, se impõe a aprovação imediata de um diploma para fazer face a uma situação de aguda crise financeira, numa altura em que a Assembleia da República não está reunida, nem sendo possível a sua reunião imediata.
A resposta poderia residir no reconhecimento das competências da Comissão Permanente, que tem precisamente o papel de substituto do plenário da Assembleia da República, em situações de recesso desta.
Acontece, porém, que este subórgão não tem competências legislativas de urgência, como seria de supor, em nada podendo contribuir para a resolução do problema.
Os atos legislativos
I. Por razões relacionadas com a preocupação de dividir a função legislativa entre a Assembleia da República e o Governo, os atos legislativos em Moçambique são somente da autoria destes dois órgãos do Estado, não se
encontra regionalizado o poder legislativo:
– as leis da Assembleia da República; e
– os decretos-leis do Governo.
II. Os atos legislativos da Assembleia da República são os que apresentam uma maior complexidade, não sendo totalmente correto dizer-se que há uma lei da Assembleia da República, quando, na verdade, há várias leis par-
lamentares pela sua função ordenadora, pelos requisitos procedimentais ou pelas qualificações formais:
– em razão da intensidade da legiferação, é de discernir as leis de bases, as leis de autorização, as leis-quadro e as leis materiais; e
– em razão da sua eficácia vinculativo-funcional, as leis reforçadas assumem uma especial força preferente no confronto com outras leis, em parte por razões específicas ditadas pelo regime a que se submetem ou em razão de possuírem uma força subordinante de outros atos legislativos.
Combinando estes critérios, o texto da CRM identifica duas formas de atos legislativos parlamentares:
a) leis; e
b) leis de autorização legislativa.
III. Os atos legislativos do Governo assumem a forma constitucional de “decreto-lei”, sendo aprovados colegialmente no seio deste órgão de soberania.
Ainda que tal não seja claro, julga-se que o Governo só tem ao seu alcance, no âmbito do exercício da competência legislativa, a possibilidade de produzir decretos-leis, sempre previamente autorizados pela Assembleia da República.
Depreende-se que o Governo não possa legislar autonomamente, o que não significa que não possa emitir outros atos normativos, mas agora restritos à função regulamentar, os quais nunca revestirão a forma de decreto-lei, mas a de decreto e outras formas previstas.
As autorizações legislativas
I. As leis de autorização legislativa são um dos modos específicos de ver o exercício da competência legislativa da perspetiva das relações entre a Assembleia da República e o Governo.
As autorizações legislativas são atos legislativos, mas diferentemente das leis materiais, eles adquirem uma função específica: permitir que o Governo desempenhe uma competência legislativa que assim se lhe abre e que, de outro modo, não poderia protagonizar.
II. A concretização de cada uma destas autorizações legislativas acontece, respetivamente, pela posterior promanação dos correspondentes atos legislativos autorizados: os decretos-leis autorizados.
O interesse prático das autorizações legislativas surge, por esta via, a duas velocidades:
– primeiro, com a produção do ato de autorização; e
– depois, com o ato legislativo autorizado.
Da lógica da autorização legislativa não se deduz qualquer ideia de obrigatoriedade de os órgãos legislativamente autorizados terem de fazer uso dessa nova faculdade, tratando-se apenas de uma autorização para legislar, e não de
uma obrigação para legislar.
Noutra perspetiva, percebe-se que as autorizações legislativas integram um juízo circunstancial acerca da sua utilidade, pelo que não valem indefinidamente: “As leis de autorização legislativa não podem ser utilizadas mais de uma vez…”.
III. A construção do regime das autorizações legislativas inclui quatro tópicos fundamentais, na sequência da exigência constitucional segundo a qual “As leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização”:
– o objeto: a necessidade de haver a tipificação do assunto em questão, não se admitindo autorizações legislativas globais, mas havendo a imposição da individualização das matérias em que se opera a delegação legislativa;
– a extensão: a imposição de, no objeto recortado, a lei de autorização delimitar, positiva e, ou, negativamente, a amplitude da competência legislativa do órgão que vai dela beneficiar, não se excluindo o caso de a extensão poder coincidir com o objeto;
– a duração: a necessidade da definição do tempo de uso potencial da autorização legislativa concedida, evitando-se uma perpetuação dessa possibilidade, demarcação que deve ser precisa do ponto de vista da sua calendarização;
– o sentido: a explicitação da orientação material acerca do uso da autorização legislativa concedida, que deve ser posta em prática pela elaboração de ato legislativo autorizado que pretenda atingir certos objetivos ou finalidades, devidamente assinalados no ato legislativo de autorização.
IV. O âmbito material das autorizações legislativas da Assembleia da República ao Governo corresponde ao conjunto das matérias da sua reserva relativa de competência legislativa.
Contudo, e ao contrário do que sucede, pelo menos, na CRP e na CRA, a CRM faz uma delimitação generalizante e residual de tais matérias, dizendo que as mesmas estão para além daquelas que integram a tipologia das matérias de competência legislativa exclusiva da Assembleia da República.
Isto quer dizer que o recorte de tais matérias é feito, no âmbito da intervenção legislativa, para além da descrita tipologia: “Com exceção das competências enunciadas no no 2 do presente artigo, a Assembleia da República pode autorizar o Governo a legislar sobre outras matérias, sob forma de decreto-lei”.
Simetricamente, a tipologia de matérias que é constitucionalmente apresentada representa um conjunto de domínios de competência legislativa parlamentar exclusiva ou indelegável no Governo.
V. No plano da duração das autorizações legislativas, elas caducam com o termo do prazo por que foram concedidas, mas também com o termo da legislatura e com a dissolução da Assembleia da República.
Estes factos extintivos explicam-se por a autorização legislativa coenvolver uma relação de confiança entre a Assembleia da República e o Governo.
VI. Se as autorizações legislativas, em qualquer destas modalidades, pressupõem uma relação com diplomas legislativos autorizados, sob pena de não poderem operacionalizar-se, é também de equacionar as possíveis relações de conflito que possam estabelecer-se entre si.
A dificuldade não é tanto saber até que ponto os diplomas legislativos autorizados são limitados pelas leis de autorização legislativa, quanto saber em que termos ocorre essa limitação, ao mesmo tempo qualificando-a para
efeitos de fiscalização da respetiva constitucionalidade e legalidade.
Eis um caso em que acontece a subordinação de um ato posterior – o ato legislativo autorizado – a um ato anterior – a lei de autorização: essa subordinação não se entende no contexto de uma relação de hierarquia, que não existe, mas numa relação funcional, de prevalência desta lei, por ter valor reforçado, sobre aquele diploma, que é um ato legislativo comum.
Se houver a violação de um dos parâmetros da lei de autorização legislativa habilitante, verifica-se uma inconstitucionalidade ou uma ilegalidade?
A conclusão é a de que a violação de qualquer dos parâmetros daquela acarreta a inconstitucionalidade, pois que mesmo a violação do sentido da autorização, ainda que definido no seio da lei de autorização, assume uma idêntica expressão constitucional, que em todos os casos estabelece as regras do jogo.
O RAR contém ainda um preceito curioso, segundo o qual “A cada proposta de lei de autorização legislativa corresponde o conteúdo de um único decreto-lei”.
VII. Apresentado o regime das autorizações legislativas, é a altura de se proceder à averiguação da respetiva natureza jurídica.
Tem sido bem mais fácil dizer o que as autorizações legislativas não são do que esclarecer aquilo que são:
– não são transferências de competência, porque o órgão autorizante mantém incólumes as suas competências legislativas;
– não são desdobramentos entre a titularidade e o exercício da competência legislativa, porque em ambos os casos os órgãos autorizante e autorizado legislam em nome próprio;
– não são meros alargamentos subjetivos de competência, porque os atos de autorização legislativa não se resumem à extensão da possibilidade de legislar aos órgãos autorizados, antes isso é feito com uma restrição material intensa, dada pelo parâmetro do sentido da autorização legislativa.
Pela afirmativa, cumpre aludir à circunstância de as autorizações legislativas se revestirem da natureza de ato autorizativo materialmente condicionante porque é graças à sua produção que o órgão autorizado pode promanar
o ato legislativo correspondente, desde que dentro dos limites materiais impostos pelo próprio ato de autorização.
A ratificação parlamentar dos decretos-leis autorizados
I. Outra figura relevante no panorama das relações interorgânicas no plano legislativo, tal como no caso das autorizações legislativas, diz respeito à ratificação parlamentar dos decretos-leis autorizados, no exercício de uma fiscalização de cunho político.
O sentido fundamental da ratificação parlamentar dos atos legislativos incorpora vantagens sob um duplo ponto de vista:
– a máxima autonomia decisória da Assembleia da República, uma vez que a cessação de vigência dos atos legislativos é aprovada por resolução parlamentar, sem qualquer intervenção presidencial, logo com a inviabilidade de um controlo de mérito por via do veto político;
– a máxima rapidez tramitacional no respetivo procedimento, por natureza mais simplificado do que o procedimento legislativo que pudesse ter o mesmo efeito.
II. A ratificação parlamentar dos decretos-leis autorizados pela Assembleia da República integra-se na função de fiscalização política, sendo aquele o âmbito material de aplicação deste mecanismo.
O procedimento aplicável postula um pedido de, pelo menos, 15 Deputados nesse sentido, na condição de isso suceder na sessão da Assembleia da República imediata à sua publicação no jornal oficial.
III. Os efeitos da ratificação parlamentar dos decretos-leis autorizados oferecem as seguintes quatro possibilidades:
– ratificação expressa: a manutenção da vigência do diploma legislativo apreciado, chegando-se à conclusão de que o pedido de apreciação recebe resposta positiva;
– ratificação tácita: a manutenção da vigência do diploma legislativo apreciado sem que a apreciação tenha sido pedida ou, tendo-o, nada tenha sido decidido até ao fim da sessão da sessão parlamentar em que a apreciação foi requerida – “Os decretos-leis aprovados pelo Conselho de Ministros no uso de autorização legislativa são considerados ratificados se, na sessão da Assembleia da República imediata, a sua ratificação não for requerida por um mínimo de quinze Deputados”, ou “A suspensão caduca quando até ao fim da sessão a Assembleia não
se pronunciar”;
– recusa de ratificação: a revogação, com a respetiva cessação da vigência, do diploma legislativo apreciado, que só se torna efetiva no momento da publicação da resolução parlamentar no jornal oficial – “A recusa de ratificação implica a revogação”, além de que “No caso de cessação de vigência, o decreto-lei deixa de vigorar no dia imediato ao
da publicação da resolução no Boletim da República;
– a alteração do diploma legislativo apreciado, neste caso as modificações introduzidas só vigorando para o futuro, num procedimento legislativo que se autonomiza em relação ao procedimento de ratificação, que termina com a cessação de vigência dos artigos do decreto-lei que sejam objeto de alteração – “No caso de alteração parcial os arti-
gos alterados no decreto-lei deixam de vigorar no dia imediato ao da publicação da resolução no Boletim da República”.
A ratificação parlamentar dos decretos legislativos autorizados integra ainda uma particularidade. Trata-se da faculdade que se defere ao órgão parlamentar de, aberto o procedimento de fiscalização, suspender provisoriamente, a título cautelar, a vigência dos diplomas legislativos abrangidos:
“A Assembleia da República pode suspender no todo ou em parte a vigência do decreto-lei até à sua apreciação”.
IV. A natureza jurídica da ratificação parlamentar dos decretos-leis tem sido discutida sob diversas perspetivas, tanto no plano formal como no plano substancial.
Do ponto de vista formal, a intervenção parlamentar reveste sempre a forma de resolução, que é um ato político, dizendo-se que “A deliberação do sentido do voto do número anterior toma a forma de resolução”.
Mas resulta evidente que, não obstante tal nomen iuris, o ato em causa possui uma intrínseca normatividade, seja ela revogatória, repristinatória ou suspensiva. Só não terá uma normatividade alternativa porque, no caso de haver alteração parcial, se inicia um colateral procedimento legislativo, o qual culminará numa lei autónoma, ainda que isso não se apresente explícito no RAR.
V. A natureza jurídica da ratificação parlamentar de decretos-leis autorizados também se relaciona com o problema da inconstitucionalidade dos atos legislativos sob apreciação, inquirindo-se sobre se a intervenção parlamentar, positiva ou negativa, tem consequências na sua eventual sanação.
Na ausência de indicações constitucionais diretas sobre essa matéria, parece que o mecanismo da ratificação parlamentar de atos legislativos, por se filiar numa preocupação de fiscalização política, não se destina a corrigir uma situação de inconstitucionalidade, além do argumento que refere ainda que a intervenção autónoma é sempre de revogação ou de modificação, não de sanação de diplomas anteriormente inconstitucionais.
Sendo apenas a hipótese de alteração aquela que na prática configura uma aplicação desta pergunta, o que se passará, nesse caso, é a manutenção da inconstitucionalidade do diploma legislativo, mesmo que a parte que lhe foi modificada não padeça de qualquer inconstitucionalidade.
VI. A ratificação parlamentar dos decretos-leis autorizados está próxima de outras figuras jurídico-constitucionais que ostentam elementos parecidos, ainda que essa diferença pudesse ter ficado mais clara se tivesse recusado a expressão “ratificação”, como muito bem faz o RAR, que unicamente refere a “Apreciação de decretos-leis”.
É que a apreciação dos decretos-leis não configura, em rigor, qualquer “ratificação legislativa”, vocábulo que adequadamente designa dois outros fenómenos que não se ajustam à natureza deste instituto:
– a ratificação-confirmação: a intervenção parlamentar que torna definitiva a eficácia de certo ato, superando a precariedade do mesmo;
– a ratificação-sanação: a intervenção parlamentar que elimina os vícios de inconstitucionalidade de que padece certo ato, sanando-o na sua potencial invalidade.
Ora, não se vislumbra no regime jurídico analisado qualquer “confirmação” ou “sanação”:
– não há “confirmação” porque o decreto-lei não precisa de um ato final parlamentar para consolidar a sua eficácia, pois basta que tal procedimento não tenha sido sequer pedido para que se considere tacitamente concedida tal ratificação (que o não é na verdade), carecendo de utilidade a possibilidade de, afinal, a Assembleia da República ratificar, porque se nada fizer considera-se ratificado à mesma;
– não há “sanação” porque a deliberação positiva não tem a virtualidade, pelas razões expostas, de sanar inconstitucionalidades praticadas, nem isso seria possível sobretudo pela forma de “resolução” de que a decisão parlamentar se reveste.
Se a ratificação parlamentar dos decretos-leis não corresponde a nenhuma destas figuras, o que ela vem a ser, pela positiva?
Vem a traduzir-se numa avaliação parlamentar de mérito sobre a opção legislativa do Governo e que se revela num expedito mecanismo de controlo político-legislativo sobre a atividade legislativa governamental.