A suspensão de direitos em estado de exceção
I. A positivação do estado de exceção no Direito Constitucional Moçambicano esteia-se em três figuras dos designados estados de necessidade constitucional: os estados de guerra, de sítio e de emergência.
A ligação do estado de exceção constitucional aos direitos, liberdades e garantias é muito óbvia: a CRM apenas admite a sua suspensão na vigência dos estados de guerra, de sítio e de emergência, em vista das respetivas finalidades e estritamente limitada ao modo por que pode exercer-se.
Como se afirma lapidarmente no seu texto, “As liberdades e garantias individuais só podem ser suspensas ou limitadas temporariamente em virtude de declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de
emergência nos termos estabelecidos na Constituição”.
Estudar a suspensão dos direitos, liberdades e garantias é, consequentemente, estudar em maior escala, tal como o mesmo vem a ser depois sistematicamente localizado no Título XV, alusivo às Garantias da Constituição, o estado de exceção na CRM.
II. As fontes normativas da regulação do estado de exceção não se limitam, todavia, ao texto constitucional, sendo de realçar tanto as fontes internacionais como as fontes legais.
No plano internacional, Moçambique encontra-se vinculado aos sistemas de proteção dos direitos do homem da ONU, pelo que também por aqui se aplicam os respetivos textos.
No plano legal, o regime constitucional do estado de exceção é referido na LDNFA, no âmbito do estado de guerra.
III. A análise que importa fazer do estado de exceção constitucional pode considerar os seguintes eixos:
a) os pressupostos – situações de crise político-social;
b) o procedimento de decretação – intervenção determinante do poder executivo;
c) os efeitos materiais – a suspensão de direitos, liberdades e garantias – e os efeitos organizatórios – o reforço das competências administrativas do poder público;
d) o controlo da execução – de feição parlamentar e jurisdicional.
Os pressupostos do estado de exceção
I. O texto da CRM, em matéria de pressupostos do estado de exceção, considera três situações possíveis para se levar a cabo a respetiva decretação:
1) a “agressão efetiva ou iminente” – uma situação de caráter militar internacional, em que se regista a ofensa da integridade territorial do Estado;
2) a “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional” – uma situação de caráter político-institucional, na qual se põe em causa a estrutura constitucional do Estado, nos seus aspetos e princípios nucleares;
3) a “calamidade pública” – uma situação de cariz social, de elevados prejuízos e que atinge um grande número de pessoas, causada por acidentes tecnológicos ou por catástrofes naturais.
II. O texto da CRM tem ainda o cuidado de obrigar à ponderação específica da diversa gravidade dos pressupostos que justificam a opção por um dos estados de exceção previstos.
Nestes termos, importa que “A menor gravidade dos pressupostos da declaração determina a opção pelo estado de emergência, devendo, em todo o caso, respeitar-se o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente, quanto à extensão dos meios utilizados e quanto à duração, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
A declaração do estado de exceção
I. Em termos de declaração do estado de guerra, do estado de sítio e do estado de emergência, regista-se um procedimento em que se envolvem os órgãos do Estado, com isso se atestando, aliás, a extraordinária importância
que a CRM quis atribuir à situação de exceção constitucional.
Tem a mesma preocupação o RAR, diploma que lhe dedica, na seção sobre o processo de declaração do estado de sítio e do estado de emergência, duas subsecções:
– a subsecção sobre a “ratificação” da declaração; e
– a subsecção sobre a “apreciação” da declaração.
II. A declaração é da competência do Presidente da República: perante o preenchimento dos respetivos pressupostos, cabe ao Chefe de Estado tomar a decisão de decretar os estados de exceção.
Nos termos do texto constitucional, “A declaração do estado de sítio ou de emergência é fundamentada e especifica as liberdades e garantias cujo exercício é suspenso ou limitado”.
Julga-se que esta declaração produz logo efeitos por si, dado o carácter urgente, não obstante a subsequente intervenção da Assembleia da República, ainda que isso não resulte muito claro do texto constitucional.
III. Antes, porém, de decretar o estado de exceção, o Presidente da República deve obter a opinião de dois órgãos que previamente se pronunciam:
– o parecer do Conselho de Estado;
– o parecer do Conselho Nacional de Defesa e Segurança.
IV. Após a decisão de decretar o estado de exceção, intervém obrigatoriamente a Assembleia da República, a quem compete a ratificação da declaração: “Tendo declarado o estado de sítio ou de emergência, o Presidente da República submete à Assembleia da República, no prazo de vinte e quatro horas, a declaração com a respetiva fundamentação, para efeitos de ratificação”.
É assim que à Assembleia da República se defere um papel igualmente decisório na declaração do estado de exceção, intervenção que juridicamente oscila entre o “ratificar” do texto da CRM e o “sancionar” do RAR, para cujo texto se afirma que “É da exclusiva competência da Assembleia da República, nos termos da Constituição, sancionar a suspensão de garantias constitucionais e a declaração do estado de sítio ou do estado de
emergência”.
A essa mesma conclusão se chega observando este preceito do RAR:
“Ao deliberar sobre o sancionamento da suspensão das garantias constitucionais, a Assembleia da República determina as garantias que suspende, as condições e o âmbito territorial do estado de sítio ou do estado de
emergência e fixa as garantias judiciais de proteção dos cidadãos a serem salvaguardadas”.
Tratando-se de um assunto urgente, “Se a Assembleia da República não estiver em sessão, é convocada em reunião extraordinária, devendo reunir-se no prazo máximo de cinco dias”.
A decisão parlamentar tem carácter urgente, pois que “A Assembleia da República delibera sobre a declaração no prazo máximo de quarenta e oito horas, podendo continuar em sessão enquanto vigorar o estado de sítio ou de emergência”.
V. Dúvida relevante que aqui se assinala relaciona-se com o facto de se saber qual a instância parlamentar que deve intervir na fase da ratificação da declaração presidencial do estado de exceção.
Embora no texto constitucional se faça apenas alusão ao plenário da Assembleia da República, até pela exigência de que o mesmo deva reunir-se, se não estiver em sessão, o certo é que, noutro lugar, o mesmo texto da CRM alude à competência da Comissão Permanente da Assembleia da República para “…autorizar ou confirmar, sujeito a ratificação, a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência sempre que a Assembleia da República não esteja reunida”.
Quer isto dizer que a declaração presidencial nunca produzirá efeitos sozinha, com a necessária intervenção parlamentar, ora pela Comissão Permanente, ora pelo plenário, ainda que a expressão do carácter “nulo” da declaração do estado de exceção feita pelo Chefe de Estado em caso de recusa parlamentar1371 pareça equívoca: do que se trata, verdadeiramente, não é de uma recusa de autorização, sem a qual que o ato nem sequer se consumaria, mas de uma recusa de ratificação, pelo que não se pode aludir a uma eficácia “anulatória” de um ato que somente provisoriamente produziu efeitos.
No caso de o plenário intervir mais tarde, o teor da sua intervenção só pode revestir a natureza de uma ratificação-confirmação, a qual implica a consolidação da declaração autorizada pela Comissão Permanente, que possuía apenas uma eficácia provisória.
Se isso não suceder e a Assembleia da República recusar a ratificação, a declaração, desde que devidamente autorizada, deixará de produzir os seus efeitos para o futuro, mantendo-se válidos os efeitos anteriormente produzidos, pelo que neste caso o carácter nulo da declaração é ainda mais equívoco porque, tendo sido inicialmente autorizada pela Comissão Permanente, é uma cessação de vigência para o futuro, e não propriamente de uma anulação de um efeito que se tivesse produzido invalidamente.
Os efeitos do estado de exceção
I. A decisão de decretação do estado de exceção – seja do estado de guerra, seja do estado de sítio, seja do estado de emergência – tem um caráter discricionário, sendo internamente delimitada pelo princípio da proporcionalidade, designadamente impondo a contenção, segundo os termos exigentes desse princípio fundamental de Direito Público, dos seguintes efeitos:
– os efeitos materiais: na suspensão de direitos fundamentais;
– os efeitos organizatórios: na tomada das medidas administrativas apropriadas;
– os efeitos territoriais: na escolha da parcela do território nacional em que esses efeitos vão ter lugar; e
– os efeitos temporais: na duração desses mesmos efeitos.
II. Os efeitos de índole material abarcam a suspensão dos direitos, liberdades e garantias previstos na CRM, embora em alguns direitos o texto constitucional adiante os termos da sua limitação:
– obrigação de permanência em local determinado;
– detenção;
– detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;
– restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão;
– busca e apreensão em domicílio;
– suspensão de liberdade de reunião e manifestação;
– requisição de bens e serviços”.
O regime das detenções obedece a um figurino especial que é constitucionalmente definido: “As detenções que se efetuam ao abrigo do estado de sítio ou de emergência observam os seguintes princípios:
a) deve ser notificado imediatamente um parente ou pessoa de confiança do detido por este indicado, a quem se dá conhecimento do enquadramento legal, no prazo de cinco dias;
b) o nome do detido e o enquadramento legal da detenção são tornados públicos, no prazo de cinco dias;
c) o detido é apresentado a juízo, no prazo máximo de dez dias”.
Há ainda para a CRM direitos absolutos ou intangíveis, cuja suspensão se apresenta proibida: os direitos à vida, à integridade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei penal, o direito de defesa dos
arguidos e a liberdade de religião.
III. Os efeitos de cariz organizatório são muito mais limitados se comparados com os efeitos materiais.
De um modo geral, obtém-se o reforço das competências administrativas das autoridades públicas, apresentando-se prevalecente uma intervenção da função administrativa por parte do poder público.
Relativamente às competências constitucionalmente estabelecidas dos órgãos de soberania, a orientação geral é a da respetiva intangibilidade: “A declaração do estado de sítio ou de emergência não pode afetar a aplicação da Constituição quanto à competência, ao funcionamento dos órgãos de soberania e quanto aos direitos e imunidades dos respetivos titulares ou membros”.
O estado de exceção tem mesmo, em certos casos, o efeito contrário de congelar o exercício de outras competências constitucionais, as quais não podem ser exercidas enquanto se mantiver a respetiva vigência: é o caso da proibição da revisão constitucional na pendência dos estados de sítio ou de emergência.
IV. Os efeitos de índole temporal da declaração do estado de exceção são ainda a considerar em termos limitativos, uma vez que a CRM expressamente afirma que “O tempo de duração do estado de sítio ou de emergência não pode ultrapassar os trinta dias, sendo prorrogável por iguais períodos até três se persistirem as razões que determinaram a sua declaração”.
O controlo do estado de exceção
I. O cuidado que o legislador constitucional pôs na elaboração de um regime do estado de exceção que respeitasse os exigentes vetores do Estado de Direito, de que a CRM justamente se reclama, visualiza-se ainda no tipo de controlo que entende fazer incidir sobre os respetivos atos.
São dois os tipos de controlo a frisar:
– o controlo político; e
– o controlo jurisdicional.
II. O controlo de natureza política – que toma o nome de “apreciação” – compete à Assembleia da República, a quem se atribui o poder de fiscalizar, a posteriori, a execução do estado de exceção.
De acordo com a CRM, “No termo do estado de sítio ou de emergência, o Presidente da República faz uma comunicação à Assembleia da República com uma informação detalhada sobre as medidas tomadas ao seu abrigo e a relação nominal dos cidadãos atingidos”.
III. O controlo de natureza jurisdicional efetiva-se, essencialmente, pelo poder judicial, a quem compete verificar a constitucionalidade dos atos de decretação e de execução do estado de exceção que tenham natureza normativa, além da legalidade dos atos não normativos, bem como a aplicação da responsabilidade penal e civil que decorra da sua prática.
A esse propósito, a CRM tem uma importante disposição: “A cessação do estado de sítio ou de emergência faz cessar os seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade por atos ilícitos cometidos pelos seus executores ou agentes”.