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Direito Constitucional

O Direito Constitucional na Enciclopédia Jurídica

O conceito de Direito Constitucional: terminologia

I. O Direito Constitucional, no contexto da sua inserção no Direito em geral, consiste no sistema de princípios e de normas que regulam a organização, o funcionamento e os limites do poder público do Estado, assim como estabelecem os direitos das pessoas que pertencem à respetiva comunidade política.

Isso quer dizer que o Direito Constitucional assenta numa tensão dia-lética, que reflete um equilíbrio – nem sempre fácil e nem sempre calibrado – entre:

  • por um lado, o poder público estadual, que numa sociedade organizada monopoliza os meios públicos de coerção; e
  • por outro lado, a comunidade de pessoas em nome das quais aquele poder é exercido, estas carecendo de autonomia e de liberdade frente ao poder público estadual.

II. A explicação do sentido do Direito Constitucional como setor da Ordem Jurídica não vem a ser unívoca, pois que nele é possível surpreender três elementos, a partir dos quais é viável a busca dos pilares fundamentais que permitem a respetiva caracterização:

  • um elemento subjetivo – que se define pelo destinatário da regulação que o Direito Constitucional contém, ao dirigir-se ao Estado na sua dupla vertente de Estado-Poder – a organização do poder público – e de Estado-Comunidade – o conjunto das pessoas que integram a comunidade política;
  • um elemento material – que se define pelas matérias que são objeto da regulação levada a cabo pelo Direito Constitucional, nela se estipulando um sistema de normas e princípios, de natureza jurídica, que traçam as opções fundamentais do Estado;
  • um elemento formal – que se define pela posição hierárquico-normativa que o Direito Constitucional ocupa no nível supremo da Ordem Jurídica, acima da qual não se reconhece outro patamar de juridicidade positiva interna, integrando-se num ato jurídico-público chamado “Constituição”.

III. A terminologia utilizada – “Direito Constitucional” – acabaria por se cristalizar com o tempo e é hoje a designação mais utilizada um pouco por todo o Mundo, sendo igualmente reconhecida em múltiplas institui-
ções internacionais e comparatísticas.

Esta denominação é diretamente tributária da palavra “Constituição”, que se apresentou coeva do nascimento deste novo setor do Direito Público a partir do século XVIII7.

Assim sendo, o Direito Constitucional representa a síntese dos princípios e das normas que se condensam (pelo menos, maioritariamente) na Constituição enquanto ato cimeiro do Estado e da sua Ordem Jurídica, podendo ser simplesmente definido como o “Direito do Estado na Constituição”.

IV. A expressão “Direito Constitucional” surgiu em França e na Itália, aquando da elaboração dos primeiros manuais que, nos respetivos contextos de receção do Constitucionalismo Liberal, se dedicaram ao estudo científico deste ramo do Direito, nesse esforço se evidenciando o nome de Pellegrino Rossi.

Esta conclusão não exclui, no entanto, que num momento inicial aquela expressão tivesse sofrido a concorrência de outras designações, como foi o que sucedeu com a de Direito Político.

Este é o caso, ainda hoje, de certos espaços académicos, em que o Direito Constitucional é grosso modo equivalente ao Direito Político, embora depois nestas paragens os estudos tenham evoluído para a separação entre o Direito Político – numa análise mais próxima da Ciência Política – e o Direito Constitucional – numa apreciação essencialmente jurídico-normativa.

A propagação da locução “Direito Constitucional”, ultrapassados estes momentos iniciais, acabaria por se consolidar um pouco por toda a parte, ainda que se tomando nota da preocupação de não se fechar num quadro rigidamente normativista.

As divisões do Direito Constitucional

I. Mesmo considerando a sua unidade intrínseca, o Direito Constitucional é suscetível de ser encarado sob diversas perspetivas, tantas quantos os problemas mais específicos que permitem a ereção de polos regulativos próprios, sem que tal possa quebrar aquela sua primária essência sistemática.

São estes os principais níveis por que o Direito Constitucional pode ser entendido:

  • o Direito Constitucional Social: o conjunto dos princípios e das normas constitucionais que versam os direitos fundamentais das pessoas em relação ao poder público, quer nos seus aspetos gerais, quer nos seus aspetos de especialidade;
  • o Direito Constitucional Económico, Financeiro e Fiscal: o conjunto dos princípios e das normas constitucionais que cuidam da organização da vida económica, medindo os termos da intervenção do poder público, no plano dos regimes económico, financeiro e fiscal;
  • o Direito Constitucional Organizatório: o conjunto dos princípios e das normas constitucionais que fixam a disciplina do poder público, no modo como se organiza e funciona, bem como nas relações que nascem entre as suas estruturas;
  • o Direito Constitucional Garantístico: o conjunto dos princípios e das normas constitucionais que estabelecem os mecanismos destinados à proteção da Constituição e à defesa da sua prevalência sobre os atos jurídico-públicos que lhe sejam contrários.

II. Dentro destes grandes âmbitos em que o Direito Constitucional se desenvolve, é ainda possível forjar distinções que assentam na existência de fenómenos mais específicos, ora dispondo uma regulação privativa, ora combinando tópicos pertinentes àquelas várias perspetivas, oferecendo, em qualquer caso, uma feição institucional.

Estas são algumas dessas possibilidades, muitas vezes até justificando a existência de disciplinas constitucionais autónomas, de cunho complementar relativamente a um patamar geral que o Direito Constitucional inegavelmente possui:

  • o Direito Constitucional Internacional: parcela do Direito Constitucional que traça as relações jurídico-internacionais do Estado, simultaneamente do ponto de vista da participação na formação e na incorporação do Direito Internacional Público no Direito Interno e do prisma dos critérios que orientam a ação do Estado nas grandes questões que se colocam à sociedade internacional, sem ainda esquecer as peculiares relações que os Estados hoje já ostentam com algumas organizações internacionais de cunho supranacional;
  • o Direito Constitucional dos Direitos Fundamentais: parcela do Direito Constitucional que é atinente à regulação dos direitos fundamentais das pessoas frente ao poder público, nos pontos relativos à sua positivação, regime de exercício e mecanismos de defesa, dimensão que se concretiza tanto na generalidade quanto na especialidade dos seus diversos tipos;
  • o Direito Constitucional Económico: parcela do Direito Constitucional que orienta a organização da economia, tanto no seu estrito âmbito privado, como nos instrumentos que ao poder público se consente para na mesma intervir;
  • o Direito Constitucional Ambiental: parcela do Direito Constitucional que, recebendo a influência crescente da necessidade da proteção do ambiente, que se mostra transversal a toda a Ordem Jurídica, confere direitos aos cidadãos e impõe deveres e esquemas de atuação ao poder público;
  • o Direito Constitucional Eleitoral: parcela do Direito Constitucional que se organiza em torno da eleição como modo fulcral de designação dos governantes, quer numa perspetiva funcional – atendendo à dinâmica do procedimento eleitoral e dos momentos em que se desdobra – quer numa perspetiva estática – levando em consideração o direito de sufrágio e a possibilidade de os cidadãos poderem democraticamente influenciar a vida do Estado;
  • o Direito Constitucional dos Partidos Políticos: parcela do Direito Constitucional que equaciona o estatuto jurídico dos partidos políticos, não apenas na sua conexão com os órgãos do poder público, mas também enquanto singular expressão da liberdade política, no plano dos vários direitos fundamentais de intervenção política;
  • o Direito Constitucional Parlamentar: parcela do Direito Constitucional que define o estatuto do Parlamento, na sua estrutura e modo de funcionamento, sem esquecer as relações que mantém com outros órgãos do poder público, maxime com o Governo;
  • o Direito Constitucional Procedimental: parcela do Direito Constitucional que disciplina os termos por que se desenrola o procedimento legislativo, na sua marcha tramitacional no âmbito da produção dos atos jurídico-públicos de feição procedimental, maxime dos atos legislativos;
  • o Direito Constitucional Regional (ou Autonómico): parcela do Direito Constitucional que incide no estatuto constitucional das regiões autónomas, expressando-se nos órgãos e competências respetivas, bem como na produção dos atos jurídico-públicos que lhe são próprios;
  • o Direito Constitucional Processual: parcela do Direito Constitucional que se reserva ao estabelecimento dos mecanismos processuais de fiscalização da constitucionalidade das leis, genericamente associados à ideia de justiça constitucional;
  • o Direito Constitucional da Segurança: parcela do Direito Constitucional que diz respeito à organização da atividade das forças armadas, policiais e de segurança, constitucionalmente relevantes como parte integrante das estruturas de proteção do Estado quanto da ótica dos deveres fundamentais dos cidadãos para com a segurança nacional;
  • o Direito Constitucional de Exceção: parcela do Direito Constitucional que engloba os princípios e as normas que se aplicam nas situações de crise que perturbam a estabilidade constitucional, numa lógica temporária, reforçando o poder público contra a liberdade dos cidadãos, através da transformação radical da Ordem Constitucional da Normalidade.

As características do Direito Constitucional

I. O mais profundo conhecimento preliminar do Direito Constitucional  – sem ainda ter chegado o momento do seu estudo pormenorizado – deve ser apoiado pela apreciação dos traços distintivos que permitem a respetiva singularização no contexto mais vasto do Direito em que o mesmo se integra.

Esta nem sequer é uma observação isenta de escolhos num momento em que aquele conhecimento é superficial, embora uma breve alusão a essas características decerto faculta avançar-se um pouco mais na respetiva dilucidação.

Várias são as características que podemos elencar14, cada uma delas carecendo de uma explicação breve, iluminando um pouco mais os meandros do Direito Constitucional:

a) Supremacia;
b) Transversalidade;
c) Politicidade;
d) Estadualidade;
e) Legalismo;
f) Fragmentarismo;
g) Juventude;
h) Abertura.

II. Antes, porém, de indagarmos o sentido de cada uma destas características, interessa situar o Direito Constitucional no contexto dos grandes compartimentos da Ordem Jurídica e aí proceder à respetiva localização. Está sobretudo em questão a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, a qual tem sido o grande fator de especialização jurídico-científica, mas igualmente de orientação formal-pedagógica no Direito Interno.

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Qualquer um dos critérios que, ao longo do tempo, têm sido propugnados para defender a operatividade desta summa divisio é válido para inserir o Direito Constitucional no Direito Público, não se suscitando a este propósito qualquer dúvida:

  • é um setor do Direito em que claramente avulta o interesse público, na medida em que nele se estabelecem as máximas orientações da vida coletiva, sob a responsabilidade do Estado;
  • é um setor do Direito que essencialmente regula o poder público, bem como as suas relações com as pessoas e os outros poderes, sendo assim este o seu objeto normativo primacial;
  • é um setor do Direito que posiciona o poder público na sua veste de suprema autoridade soberana, atribuindo-lhe as mais amplas faculdades normativas que se conhece.

III. A primeira das características referenciadas é a da supremacia que o Direito Constitucional ocupa dentro da Ordem Jurídica.

Não é mais possível equacionar o Direito Positivo sem nele ao mesmo tempo ver uma estrutura hierarquicamente organizada, em que se depara com a existência de diferentes patamares normativos, compostos por outros tantos conglomerados de normas e de princípios jurídico-positivos.

Olhando para esse escalonamento da Ordem Jurídica, o Direito Constitucional, quanto à respetiva força jurídica, assume uma posição suprema, colocando-se no topo da respetiva pirâmide, desse facto decorrendo importantes corolários.

A localização no cume da hierarquia da Ordem Jurídica implica que o respetivo sentido ordenador não possa ser contrariado por qualquer outra fonte, que lhe deve assim obediência, tal facto se traduzindo na ideia de conformidade constitucional ou de constitucionalidade.

Essa força suprema não se mostra apenas concebível numa ótica substantiva, dada essa localização no topo da Ordem Jurídica. Ela é também adjetiva, ao igualmente implicar a adoção de mecanismos de verificação dessa supremacia, assim como a determinação de consequências negativas para os atos e os comportamentos que violem aquele Direito supremo.

Aquela supremacia – que é hierárquico-normativa – não se pode confundir, contudo, com qualquer putativa ilimitação material das opções do Direito Constitucional, as quais se perspetivam dentro das condições axiológicas a que necessariamente se encontra adstrito.

IV. O posicionamento do Direito Constitucional no cimo do Ordenamento Jurídico pode também refletir-se numa perspetiva material, o que automaticamente faz transparecer a transversalidade das matérias que o atravessam.

É que, por força desse lugar eminente, ao Direito Constitucional defere-se uma preocupação de traçar as grandes opções de certa comunidade política, o que determina a sua relação com múltiplos temas que, nos dias de hoje, se mostram relevantes à convivência coletiva, o que, aliás, se revela em número progressivamente maior, que bem se compreende na hodierna e inevitável intensificação regulativa.

A transversalidade que se expressa nestas muitas conexões com tantos lugares da Ordem Jurídica foi bem identificada por um professor de origem italiana, refugiado na Suíça e depois radicado em França, no século XIX,  Pellegrino Rossi, ao considerar que o Direito Constitucional seria composto pelas “têtes de chapitre” da Ordem Jurídica.

Decerto que esta transversalidade traz dificuldades acrescidas nas tarefas de harmonização com as zonas fronteiriças de outros ramos de Direito, sobretudo na utilização de conceitos que sejam oriundos de outras paragens, não se podendo olvidar ainda a maior complexidade das tarefas hermenêuticas que lhe estão associadas.

V. Característica que igualmente avulta no Direito Constitucional, mas que também por certo lhe aumenta o seu encanto científico, é a da sua politicidade, resultado evidente por o seu objeto ser o estatuto do poder público.

A perspetiva a frisar aqui, porém, não é tanto a da natureza desse objeto quanto sobretudo a das implicações que de tal facto se projetam sobre a definição do regime jurídico que vai estabelecer.

Essa politicidade impõe a necessidade suplementar de se estar mais atento à proximidade entre as situações juridicamente reguláveis pelo Direito Constitucional e aquelas que devem manter-se no campo puro da Política: mesmo no caso da intervenção do Direito Constitucional, é por vezes de aceitar que aí a decisão possa ser livremente determinada por critérios políticos, não juridicamente controláveis ao nível dos respetivos parâmetros próprios.

Em resumo: pode aqui residir uma dificuldade acrescida, nem sempre fácil de transpor, de perceber os casos que devem ser deixados ao livre jogo da atividade política, assim dispensando ou aliviando a intervenção jurígena que necessariamente o Direito Constitucional acarreta, para além de outros problemas que surjam associados às tarefas especificamente interpretativas.

VI. Traço que paralelamente não pode ser olvidado é o da estadualidade que impregna o Direito Constitucional, por ser este, a um passo, sujeito e objeto do próprio Estado.

Claro que não se desconhece que o Direito não tem uma pertença necessariamente estadual, até se valorizando, nos tempos mais recentes, as preocupações pluralistas da Ordem Jurídica, quer no domínio das fontes, quer no domínio das entidades que são submetidas ao império do Direito e que o aplicam.

Contudo, sem dúvida que o Direito Constitucional ostenta uma estadualidade intrínseca, sendo porventura o mais estadual dos setores jurídicos, ao representar a radicalidade da soberania estadual, daí decorrendo a sua projeção na modelação da pertinência dos outros ordenamentos jurídicos que não tenham uma origem estadual.

VII. Ao nível das fontes do Direito em geral, o Direito Constitucional expressa ainda uma específica tendência no modo como se sublinha a importância relativa de uma delas na produção das normas e dos princípios constitucionais, sendo influenciado por uma conceção legalista.

Inevitavelmente que o Direito Constitucional assenta numa visão de cunho legalista, pois que o acento tónico, na relevância que é conferida às respetivas possíveis fontes normativas, recai sobre a lei, sendo até este setor do Direito o resultado de uma intenção particular de disciplinar o poder público, bem como os espaços de autonomia das pessoas que o mesmo serve.

Assim é, desde logo, por razões históricas, uma vez que o Direito Constitucional – paralelamente à codificação que representou – se estabeleceu contra um Direito essencialmente consuetudinário, na preocupação de rasgar com o passado monárquico-absolutista triunfante até ao século XVIII.

Assim é, por outro lado, por razões estratégicas, tendo em atenção a função específica que está atribuída ao Direito Constitucional na regulação do poder público, porquanto se pretende, com a precisão possível, limitar o seu exercício, tarefa muito mais espinhosa – para não dizer impossível – se feita por uma via consuetudinária ou jurisprudencial.

Assim é, por fim, por razões filosófico-políticas, na medida em que o Direito Constitucional esteve e está associado à expressão democrática da soberania, que dificilmente se pode revelar em atos jurisdicionais ou que, nos atos costumeiros, não pode representar-se quantitativamente nas maiorias, que são apenas viáveis nas deliberações apropriadas à produção das leis.

VIII. Em razão da sua função ordenadora, o Direito Constitucional apresenta-se do mesmo modo como fragmentário, pois que não leva a cabo uma regulação exclusivista das matérias constitucionais, em face da congénita essencialidade regulativa que o acompanha.

Tal fragmentarismo significa que raramente compete ao Direito Constitucional efetuar uma regulação completa das matérias sobre que se debruça, deixando muitos dos seus elementos de regime a outros níveis reguladores, aparecendo como um setor mínimo fundamental, no qual se estabelecem, ao nível da cúpula, os fundamentos dos diversos institutos jurídicos, públicos e privados.

Obviamente que esta característica nem sempre se apresenta com a mesma intensidade e a respetiva quantificação pode estar estritamente relacionada com o facto de haver matérias mais tipicamente constitucionais do que outras, para tal contribuindo cada opção no sentido de uma forte ou fraca constitucionalização material e formal das questões que são chamadas à respetiva órbita regulativa.

IX. O critério temporal na apreciação de um ramo do Direito não deixa de ser importante, já que a duração da respetiva vida autónoma inelutavelmente se reflete nos resultados a que possa chegar-se.

É indubitável que o Direito Constitucional – juntamente com muitos outros ramos do Direito Público, como é o caso do Direito Administrativo, seu contemporâneo, e do Direito Internacional Público, aparecido algum tempo antes – comunga de uma mesma juventude na respetiva elaboração, pelo pouco tempo que medeia entre a sua criação moderna e a atualidade.

As consequências não deixam de se sentir, em primeiro lugar, numa atividade doutrinária e jurisprudencial não tão abundante e sedimentada quanto sucede com os ramos jurídicos mais antigos, com profundos lastros histórico-culturais, a mergulhar nas profundezas de outras épocas históricas, como a Antiguidade Clássica e a Idade Média.

No entanto, a principal consequência a salientar reside na ideia de não ser possível lidar com conceitos e soluções testadas há muitos séculos, os quais sobreviveram à experiência do tempo e das circunstâncias, tal verificação podendo trazer o perigo de adicionais fatores de debilidade dogmática nas soluções a encontrar.

X. Cumpre finalmente considerar que o Direito Constitucional pode beneficiar de um traço de abertura, que o faz permeável aos influxos de outros ramos normativos, estando muito longe de ser um sistema normativo fechado.

Isso é essencialmente verdadeiro a partir da consideração do respetivo caráter fragmentário, porquanto para certas matérias não é o Direito Constitucional uma disciplina unitária, em larga medida sendo esse papel dificultado pelo seu cunho transversal e plurimaterial.

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Em termos práticos, o Direito Constitucional aceita complementaridades e receções de outros ordenamentos, internacionais e internos, e com eles mantém relações intersistemáticas que não podem ser desprezadas, sobretudo na parte dos direitos fundamentais.

As relações do Direito Constitucional com os ramos do Direito

I. O conhecimento do Direito Constitucional torna-se ainda mais impressivo pela concreta demarcação das suas linhas de fronteira no confronto com outros ramos do Direito, na suposição de que o Direito Constitucional – como, de resto, qualquer setor jurídico – é uma “região” do “continente” mais vasto que é a Ordem Jurídica.

Só que essas linhas de fronteira com os outros ramos que lhe são mais próximos revestem a particularidade, que só se encontra presente no Direito Constitucional, de não ser, as mais das vezes, fruto de uma certa divisão de tarefas e, pelo contrário, surgir com zonas sobrepostas, simultaneamente presentes no Direito Constitucional e no ramo jurídico que com ele se relaciona.

A separação dos âmbitos regulativos não é normalmente feita pela identificação dos diferentes institutos ou matérias a regular, mas através da preocupação de que se defere ao Direito Constitucional a essência de uma 40 Direito Constitucional regulação jurídico-normativa, à qual se acrescenta uma força hierárquico-formal suprema:

  • a essencialidade material regulativa determina que o Direito Constitucional cumpre a relevante função de estabelecer as grandes opções do Ordenamento Jurídico, assim se lhe dando a tarefa de, a título fundacional, definir as opções estratégicas da comunidade política, este podendo assim apresentar-se conexo com múltiplos – senão mesmo, a totalidade – ramos do Direito;
  • a supremacia hierárquico-formal subordina os diversos ramos jurídicos às respetivas orientações, acarretando a necessidade de os muitos desenvolvimentos regulativos lhe serem conformes, mas estando de fora do Direito Constitucional, pela impossibilidade operativa óbvia de tudo levar para dentro da Constituição.

Daí que não possa estranhar-se que as relações do Direito Constitucional com os outros ramos sejam muito mais intensas e extensas do que sucede com qualquer outro setor jurídico, metaforicamente representadas pela imagem do “tronco da árvore” que sustenta a vastidão dos ramos e das folhas da Ordem Jurídica.

Esse facto até permite o aparecimento, com importantes implicações dogmáticas, de ramos jurídicos mistos: o Direito Constitucional Administrativo, o Direito Constitucional Internacional, o Direito Constitucional Europeu ou o Direito Constitucional Penal, no Direito Público; o Direito Constitucional Civil ou o Direito Constitucional do Trabalho, no Direito Privado.

II. As relações mais intensas são entre o Direito Constitucional e os diversos ramos do Direito Público, o que bem se explica por aquele desenvolver o estatuto do poder público, ainda que em relação com os cidadãos, sendo de exemplificar os seguintes casos, com vários pontos de sobreposição regulativa:

  • o Direito Administrativo: sendo o Direito Administrativo o setor jurídico que estabelece a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as suas relações com os administrados, relaciona-se com o Direito Constitucional porque lhe pede uma intervenção na fixação das grandes linhas orientadoras dos seus principais temas, como sejam a organização administrativa, com realce para a posição do Estado-Administração, os direitos fundamentais dos administrados, as diversas manifestações do poder administrativo ou os termos da intervenção jurisdicional na averiguação da juridicidade administrativa;
  • o Direito Internacional Público: se o Direito Internacional Público é o setor do Direito que estabelece as normas e os princípios que disciplinam a organização e a atividade dos membros da sociedade internacional, enquanto atuam nessa órbita e assistidos de poder público, ao Direito Constitucional compete a definição da relevância desse Direito na Ordem Interna, não só no modo da sua inserção e no respetivo lugar hierárquico, bem como os diversos poderes das pessoas coletivas internas no que respeita à participação nas relações internacionais, com a natural relevância que é dada ao Estado, entidade mais proeminente nas relações internacionais;
  • o Direito Penal: sendo o Direito Penal o setor jurídico que, de um modo mais drástico, sanciona os comportamentos humanos através da respetiva criminalização, aplicando aos infratores penas privativas de liberdade, para além dos casos das medidas de segurança, é indesmentível que o Direito Penal só se pode estabelecer em razão dos bens jurídicos que são recortados pelo Direito Constitucional no plano do catálogo dos direitos fundamentais consagrados, sinal da proteção mais relevante que a comunidade política quis fixar; como centro agregador, subjetivamente falando, o fenómeno estadual, nele se inserindo o Direito Constitucional e o Direito Administrativo. Esta tem sido sobretudo a experiência germânica, não só ao nível das realidades pedagógicas universitárias como, sobretudo, no plano científico, relativamente ao qual são inúmeros os exemplos de atividade juspublicista que aí se concentra e que se traduz em estudos dentro deste domínio mais amplo, com diversos elementos doutrinários proeminentes, a começar por alguns muito relevantes manuais universitários.
  • o Direito Contraordenacional: num nível menos dramático, cabe ao Direito Contraordenacional a tipificação de comportamentos ilícitos, mas em que a sua fraca ilicitude apenas determina a aplicação de sanções pecuniárias ou outras de cariz acessório, nunca privativas de liberdade, cabendo, contudo, ao Direito Constitucional a sua definição, numa lógica secundária em relação ao Direito Penal;
  • o Direito Judiciário: pedindo-se ao Direito Judiciário o estabelecimento da organização e do funcionamento das instituições que exercem o poder judicial, na sua vertente institucional, regista-se a conexão de ser ao Direito Constitucional que se atribui a definição fundamental do enquadramento de tal poder, bem como da respetiva organização, no contexto mais vasto dos diversos poderes do Estado;
  • o Direito Processual: regulando o Direito Processual, nas suas múltiplas divisões, a tramitação do poder jurisdicional do Estado no seu lado material, e não tanto institucional, na dialética que se estabelece com os diversos sujeitos intervenientes, ao Direito Constitucional reconhece-se a preocupação pela imposição de certos direitos fundamentais de cunho processual, em ordem a proteger o núcleo fundamental daquela dialética;
  • o Direito Financeiro: representando o Direito Financeiro o setor jurídico que disciplina a atividade jurídico-financeira das entidades públicas, ele mostra uma íntima conexão com o Direito Constitucional na medida em que se estabelecem as prioridades fundamentais ao nível da estrutura do Orçamento do Estado, bem como das receitas e das despesas de diversos organismos públicos em geral, para além dos mecanismos de controlo, político e jurídico, daquela mesma atividade;
  • o Direito Fiscal: uma vez que o Direito Fiscal tem a preocupação de estabelecer o regime das receitas dos impostos, inerentes à atividade pública, calibrando a tensão entre o Estado-Fisco e os contribuintes, facilmente se compreende que ao Direito Constitucional se reconheça a descrição dos fundamentos da tributação, na generalidade e na especialidade, assim como a positivação dos direitos fundamentais dos contribuintes;
  • o Direito da Economia: não sendo em Estado Social a atividade económica um domínio desregulamentado de intervenção humana, é natural que se façam sentir nos múltiplos capítulos do Direito da Economia zonas de sobreposição com os textos constitucionais, estes contendo a disciplina fundamental do regime económico a estabelecer;
  • o Direito da Religião: como conjunto de orientações ordenadoras no tocante à proteção dos sentimentos religiosos numa sociedade democrática, é natural que neste recente setor autónomo do Direito se evidenciem aspetos de conexão com o Direito Constitucional, maxime em matéria de proteção da liberdade de religião – em ambas as perspetivas individuais e comunitárias – e no domínio da relação do poder público com o fenómeno religioso, nas suas diversas manifestações;
  • o Direito da Segurança: como o conjunto dos princípios e das normas, maioritariamente de Direito Público, que se aplicam em torno da prossecução da ideia de segurança, em cada uma das suas vertentes de segurança externa, segurança interna, segurança internacional e segurança do Estado, é de supor que o texto constitucional estabeleça as suas orientações básicas.

III. Ainda que menos fortes, já não é novidade para ninguém que o Direito Constitucional igualmente se apresenta como um setor jurídico com muitas opções para o Direito Privado, até porque os tempos mais recentes têm vindo a esbater – para não dizer, apagar – uma inicial e essencialmente inadequada severa demarcação de fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado.

Está, assim, ultrapassado o “dogma” – que depois, para alguns, se tornou em “preconceito” e em “trauma” – da impenetrabilidade do Direito Público no Direito Privado ou, mais especificamente, da despiciência do Direito Constitucional para o Direito Privado. Os setores constitucionais em que tal se torna mais nítido são os do Direito Constitucional dos Direitos Fundamentais e do Direito Constitucional da Economia, com verdadeiros estudos paradigmáticos a este propósito.

Paralelamente a esta relevância material, é preciso ainda dizer que o Direito Constitucional, para qualquer destas parcelas do Direito Privado, sempre se afigura pertinente no seu lado organizatório, na medida em que distribui o poder legislativo por diversas instâncias, dentro e fora do Estado, de acordo com os diversos pólos legislativos que são constitucionalmente reconhecidos.

No primeiro caso, as conexões são múltiplas por força da dispersão dos direitos fundamentais praticamente em todos os ramos do Direito Privado, do Direito da Personalidade ao Direito do Trabalho, passando pelo Direito
de Autor e pelo Direito da Família.

No outro caso, as conexões são mais visíveis no plano da ordenação constitucional da atividade económica, interessando ao Direito Civil, ao Direito da Concorrência, ao Direito dos Mercados Públicos ou ao Direito dos Valores Mobiliários, na sua vertente de Direitos patrimoniais.