Órgãos de soberania, órgãos do Estado e órgãos constitucionais
I. Conhecidos os aspetos gerais que permitem caracterizar os órgãos públicos, é a altura de concretizarmos tudo isso olhando para o texto da CRM, assim como para alguma da legislação constitucional materialmente extravagante.
São três as fundamentais categorias com que importa lidar para compreender, na sua totalidade, o estatuto jurídico que é conferido aos diversos órgãos jurídico-públicos, sendo de destrinçar entre:
– os órgãos de soberania;
– os órgãos de Estado; e
– os órgãos constitucionais.
Essa é uma discussão que se situa no Capítulo Único sobre Princípios Gerais do Título V da CRM, dedicado à Organização do Poder Político.
II. Os órgãos de soberania estão diretamente previstos na CRM, embora esta se coíba de apresentar o critério da respetiva seleção, limitando-se a enunciar os tipos de órgãos que integram a classificação: “São órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais e o Conselho Constitucional”.
Têm sido dois os critérios propostos para explicar a conclusão de serem estes órgãos – e não outros – a possuir a qualidade de órgãos de soberania:
– o critério da função jurídico-pública: é órgão de soberania o órgão que se insere numa função jurídico-pública;
– o critério da decisão cogente: é órgão de soberania o órgão que produz atos obrigatórios.
Quer parecer-nos que o critério válido só pode ser a conjugação destes dois, num sentido eclético: os órgãos de soberania são os órgãos que, desenvolvendo um ou vários dos poderes públicos, se assumem como produzindo atos decisórios.
Do ponto do regime aplicável, sobressai a orientação geral de o seu estatuto estar submetido a uma reserva de Constituição: “Os órgãos de soberania (…) devem obediência à Constituição e às leis”.
III. Os órgãos de Estado é outra categoria que não se identifica com o conceito dos órgãos de soberania e atende ao nexo de pertença do órgão em causa à pessoa coletiva em que se integra, neste caso sendo um órgão que produz uma vontade referenciada ao Estado.
Se se pode dizer que os órgãos de soberania são sempre órgãos do Estado, a inversa não é verdadeira, porque nem todos os órgãos do Estado são órgãos de soberania.
IV. Os órgãos constitucionais são, diferentemente dos órgãos de soberania e dos órgãos do Estado, órgãos que, não se preenchendo pelos seus critérios, adquirem uma posição jurídico-constitucional, o que se assume prenhe de consequências práticas, em demonstração da importância que se lhe quis conferir.
Sendo órgãos constitucionais, o respetivo estatuto impõe, desde logo, um reconhecimento ao nível do texto constitucional, com muitos dos seus traços estatutários ali estabelecidos, com isso se diminuindo a margem de liberdade de conformação do legislador infraconstitucional.
Cotejando os órgãos constitucionais e os órgãos de soberania, pode dizer-se que todos os órgãos de soberania são órgãos constitucionais, mas nem todos os órgãos constitucionais são órgãos de soberania, como dois círculos concêntricos, um menor dentro de outro maior.
Órgãos centrais, governos provinciais e assembleias provinciais
I. Ainda no âmbito dos princípios gerais da Organização do Poder Político, a CRM introduz uma distinção vertical, no tocante aos órgãos do Estado, entre:
– os órgãos centrais; e
– os órgãos provinciais.
Mas esta é uma referência incompleta porque são igualmente do Estado os seus órgãos locais, que não têm aqui qualquer alusão, embora mais adiante no articulado constitucional beneficiem de um lugar próprio, no Título XII.
Disso se dá conta implicitamente o texto da CRM ao estabelecer que “Os órgãos centrais do Estado asseguram a sua representação nos diversos escalões territoriais”, o que não se pode reduzir unicamente ao escalão territorial da província.
II. O texto da CRM avança com uma definição do que considera ser os órgãos centrais do Estado: “São órgãos centrais do Estado os órgãos de soberania, o conjunto dos órgãos governativos e as instituições a quem cabem garantir a prevalência do interesse nacional e a realização da política unitária do Estado”.
A construção do regime próprio dos órgãos centrais do Estado afere-se pelos seguintes tópicos, os quais ficam, todavia, muito dependentes de legislação ordinária:
– Artigo 137 da CRM – Incompatibilidade
– Artigo 139 da CRM – Atribuições dos órgãos centrais
– Artigo 140 da CRM – Dirigentes e agentes dos órgãos centrais
Art. 145 da CRM.
Art. 138 da CRM.
III. Curiosamente, os órgãos provinciais recebem mais precisas orientações do texto da CRM, estabelecendo-se uma dicotomia fundamental entre os dois tipos de órgãos provinciais:
– o órgão executivo: o Governo Provincial;
– o órgão parlamentar: a Assembleia Provincial.
Estes órgãos têm em comum serem as estruturas decisórias ao nível da província como escalão territorial intermédio.
IV. A natureza do Governo Provincial não suscita dúvida na sua qualificação, podendo facilmente integrar-se na Administração Periférica Provincial do Estado, na medida em que este órgão faz as vezes do Estado-Adminis-
tração – o Governo – no plano provincial: “O representante do Governo a nível da Província é o Governador Provincial”.
Isso mesmo fica depois comprovado não apenas pelas competências que detém como no modo da respetiva designação:
– as competências: “O Governo Provincial é o órgão encarregado de garantir a execução, ao nível da província, da política governamental e exerce a tutela administrativa sobre as autarquias locais, nos termos da lei”;
– o modo de designação: “Os membros do Governo Provincial são nomeados pelos ministros das respetivas pastas, ouvido o Governador Provincial”.
V. Já a Assembleia Provincial suscita uma complexidade interpretativa acrescida, pelo variado feixe das suas competências, assentando numa legitimidade contrária à do Governador Provincial.
É que as “As assembleias provinciais são órgãos de representação democrática, eleitas por sufrágio universal, direto, igual, secreto e periódico e de harmonia com o princípio de representação proporcional, cujo mandato
tem a duração de cinco anos”.
Organização do Poder Político
Quanto às suas competências, “Às assembleias provinciais compete, nomeadamente:
a) fiscalizar e controlar a observância dos princípios e normas estabelecidas na Constituição e nas leis, bem como das decisões do Conselho de Ministros referentes a respetiva província;
b) aprovar o programa do Governo Provincial, fiscalizar e controlar o seu cumprimento”.
Quer isto dizer que a Assembleia Provincial tem uma natureza híbrida:
– por um lado, é uma estrutura decisória do Estado-Administrativa ao nível intermédio do escalão provincial, assumindo aí uma dimensão deliberativa de tipo parlamentar, com intervenção relevante na aprovação e fiscalização do programa do Governo Provincial;
– por outro lado, a sua legitimidade não lhe advém de uma escolha do Governo do Estado, antes assenta no voto popular da específica circunscrição provincial em que os seus membros são eleitos, agindo em nome das populações provinciais.
Múltiplos aspetos do regime jurídico das assembleias provinciais foram posteriormente desenvolvidos pela L no 5/2007, de 9 de fevereiro.
O sistema de governo moçambicano: semipresidencialismo?
I. O modo como o poder público estadual se organiza não pode ser visto apenas na relação que se estabelece entre os governantes e os governados.
Ele igualmente se analisa, até com maior tecnicidade, embora com uma menor carga valorativa, na combinação de soluções quando se pensa nas relações interorgânicas existentes entre os diversos órgãos do Estado.
Nisso consiste o sistema de governo: na avaliação do tipo de relações que se fixam entre os diversos órgãos entre si, privilegiando-se a escolha dos órgãos politicamente ativos, dessa apreciação sendo necessário excluir os
tribunais, pois que – já como dizia Charles de Montesquieu há alguns séculos – eles são um poder neutro.
Contudo, essa apreciação deve ser feita numa dupla perspetiva:
– primeiro, olhando para as orientações que se possam extrair do texto constitucional, eventualmente complementadas por regimes infraconstitucionais existentes;
– depois, observando a prática das competências constitucionalmente estabelecidas e avaliar como ocorre a interpretação e a aplicação dessas normas constitucionais.
II. A discussão em torno dos diversos e possíveis sistemas de governo, em teoria, pode corresponder ao número de textos e experiências constitucionais, sendo certo que cada texto e cada experiência trazem algo de peculiar em comparação com todas as demais.
Essa não seria, por certo, uma análise útil e sobretudo factível no contexto em que nos encontramos, pelo que somos forçados a refletir a partir de categorias dadas pelo Direito Constitucional Comparado, nelas avultando como sistemas de governo mais significativos estes três:
– o presidencialismo;
– o parlamentarismo; e
– o semipresidencialismo.
Forçoso é ainda reconhecer que o estudo dos sistemas de governo não fica por aqui: mesmo em sistemas democráticos, é possível referir outros, como o sistema de governo diretorial ou o sistema de governo semiparlamentar.
Isto para já não falar em sistemas de governo pertencentes a regimes políticos ditatoriais, nos quais são várias as hipóteses que se admitem, como o sistema de chanceler, o sistema fascista ou o sistema soviético.
III. Eis um tema que tem sido objeto de acentuada discussão quanto à solução vertida na CRM e indo diretamente à qualificação do sistema de governo de Moçambique, é mais fácil explicitar o que ele não é.
Desde logo se impõe afastar a qualificação de sistema de governo parlamentar, o qual assenta nas seguintes características:
– no carácter apagado da dimensão presidencial: que não se verifica pelos amplos poderes presidenciais atribuídos;
– no poder de heterodissolução parlamentar: não está consagrado como tal.
Também o atual sistema de governo moçambicano não pode ser qualificado como presidencial, embora possua alguns dos seus traços, como seja o da legitimidade democrática do Presidente da República:
– a ausência do poder de dissolução parlamentar: este poder está consagrado e é uma relevante competência do Presidente da República;
– a ausência de diarquia do executivo: existe bicefalia no poder executivo, com autonomia recíproca dos cargos de Presidente da República e de Primeiro-Ministro.
IV. Numa aproximação pela positiva, tem sido referido que o sistema de governo moçambicano corresponde a um semipresidencialismo.
Com efeito, há quatro elementos presentes que confirmam esta possibilidade de um sistema de governo semipresidencial, os dois primeiros retirados de outras qualificações de sistemas de governo, e os dois últimos como traços singulares do semipresidencialismo:
– a legitimidade democrática eletiva do Chefe de Estado, num sistema de eleição separada dos Deputados à Assembleia da República, no contexto das eleições gerais;
– a diarquia no executivo, com distinção entre Chefe de Estado e Primeiro-Ministro;
– o poder de heterodissolução parlamentar, pois que o poder de dissolução da Assembleia da República existe, sendo exercido pelo Presidente da República, não obstante algumas restrições a que o mesmo se submete;
– a dupla responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República e a Assembleia da República, sendo os membros do Governo nomeados pelo Presidente da República, e tendo o Governo de se submeter a um juízo político de aceitação por parte da Assembleia da República na aprovação do seu programa.
V. Aceitando essa identificação como ponto de partida, não se deixa de assinalar tratar-se de um semipresidencialismo assimétrico, que se escapa de alguns elementos que tradicionalmente o equilibram.
É o que sucede com os acentuados poderes conferidos ao Presidente da República, de que cumpre realçar a sua posição na condução do Governo:
“O Conselho de Ministros é composto pelo Presidente da República, que a ele preside, pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros”.
Daí que nos pareça que estes elementos suscitam a qualificação do sistema de governo moçambicano com um semipresidencialismo presidencializante, em que o pendor da dimensão presidencial é mais acentuado do que o pendor da dimensão parlamentar.
De resto, a prática política só tem confirmado esta conclusão não apenas por ter sempre havido uma maioria presidencial coincidente com a maioria parlamentar como por o Presidente da República ser o líder político da
maioria partidária, ao ocupar o lugar de presidente do respetivo partido de apoio, a FRELIMO.