Apontamentos O Megasismo de Lisboa no século XXI

O Megasismo de Lisboa no século XXI

O Megasismo de Lisboa no século XXI ou Vulnerabilidade Sísmica do parque edificado de Lisboa

Preâmbulo – o edificado de Lisboa

A sismicidade de todo o território nacional, sustentada no conhecimento da sua história e nos diferentes registos de ocorrências, pelo menos desde o século XVIII, quando em 1 de Novembro de 1755 a cidade e o País acordaram com a destruição produzida pela maior catástrofe natural alguma vez observada em Portugal, tem constituído preocupação de técnicos ligados à engenharia de estruturas, à sismologia e à engenharia sísmica, mas também de todos os que ligados à protecção civil tentam adivinhar as consequências de um sismo de grande intensidade numa cidade como Lisboa.

Apesar desta preocupação ser assumida por um número crescente de técnicos e cientistas, não é nada evidente que exista a consciência política do que pode o cenário seguinte a tal catástrofe e é certo que a opinião pública, que traduz o pensamento das populações, não se encontra minimamente condicionada por uma tal ideia, naturalmente porque, com excepção do Arquipélago dos Açores, o território nacional há muito não sofre qualquer devastação provocada por sismos, ao contrário do que sucede, cada vez com mais frequência com as alterações climáticas, os Invernos chuvosos e os Verões secos que directa e indirectamente vão ceifando vidas e destruindo economias.

Lisboa foi, de facto, uma cidade historicamente fustigada por sismos, com relevo para o século XVI e para o século XVIII; embora se possa hoje admitir que o terramoto de 1531 foi quase tão arrasador para a capital como o veio a ser o de 1755, a verdade é que deste existe, pela primeira vez, um registo exaustivo das consequências da catástrofe nas populações e nas suas habitações que o despotismo iluminado do Marquês tornou obrigatório, servindo de base a uma nova forma de olhar a cidade.

É interessante verificar como a brutalidade do impacto do sismo na cidade (e no País, pelo menos a Sul) impôs o respeito na aplicação de novos regulamentos de urbanismo e de construção que inevitavelmente se definiram, pese embora a falta que ainda se sente de documentação escrita que suporte esta tese; o medo de todos aqueles que sobreviveram ao desastre não tornava necessários outros argumentos mas, se for passada em revista a história posterior do urbanismo e da construção alfacinhas, verificar-se-á como essa memória se vai diluindo, o medo passando e, à medida que tal sucede, os edifícios aumentam em altura, as paredes diminuem de espessura e a qualidade construtiva vai sendo adaptada às exigências e necessidades dos novos tempos.

O sismo de Setúbal de Novembro de 1858 não foi suficiente para ajudar a recuperar o que se estava perdendo, talvez porque, embora violento, não teve consequências desastrosas, talvez porque a cidade era já em boa parte a Lisboa Pombalina exemplarmente construída, das fundações à cobertura; não surpreende, por isso, que se venha a assistir a uma progressiva degradação da qualidade da construção na cidade e, quando se atinge o período áureo da nova cidade de Ressano Garcia que agora se expande a Norte, a especulação fundiária e o ritmo “vertiginoso” das construções traz à cidade construtores impreparados e ambiciosos, desconhecedores das exigências tradicionalmente impostas e que vêm a desenvolver técnicas construtivas muito mais expeditas que permitem uma execução muito mais rápida e económica, mas também muito mais pobre e insegura, a ponto de diversos edifícios se desmoronarem durante a construção.

Com a chegada do betão, considerado “o material estrutural” de eleição, destinado à eternidade abandona-se primeiro a madeira, substituindo vigamentos assoalhados leves por lajes de betão armado muito mais pesadas e depois substituem-se as tradicionais paredes resistentes de alvenaria de pedra e de tijolo por estruturas porticadas de betão armado, constituídas por pilares e vigas deste material formando reticulados mais ou menos regulares.

Esta transição, traduzida pela experimentação e abandono de diversas soluções, dá-se durante uns escassos trinta anos, nascendo os anos 50 para o absoluto domínio do betão armado.

Este novo material estrutural, de grande potencial e muito mais exigente no que se refere ao conhecimento científico do que as velhas madeiras e alvenarias, virá a ser objecto de estudos teóricos e experimentais de grande desenvolvimento e apoiará e será apoiado por igual desenvolvimento dos procedimentos de análise estrutural e por novas filosofias que passam a dominar o dimensionamento e a verificação da segurança das estruturas.

Os anos de 1970 assistem assim, pode dizer-se, ao moderno betão armado e às estruturas que, quase sem competição, fazem os edifícios e todas as construções do País, pontes, barragens, depósitos, silos, etc., e a nova regulamentação técnica que se vai desenvolver e publicar dá o suporte a novas estruturas que, parecendo similares às da primeira fase do betão, são agora informadas por novos critérios e conceitos que irão ainda evoluir a partir dos finais de 80 quando se introduzem novas preocupações com a durabilidade do material, entretanto desmitificado.

Isto significa que, numa cidade antiga que vem crescendo desde sempre, coexistem ainda diversas épocas e tipologias estruturais e construtivas; as épocas mais remotas foram vendo diminuir sistematicamente os seus representantes, destruídos muito por catástrofes menores ou maiores, e pelo homem que vê modernidade no que é só destruição ou que, por inacção e desleixo, conduz ao abandono e à ruína do edificado.

É assim natural que haja muito pouca cidade edificada anterior ao século XVIII, na sua maior parte constituída por edifícios muito alterados e diversas vezes intervencionados, uns de carácter erudito e monumental, outros populares integrados em alguns dos bairros históricos da cidade, no Castelo e em Alfama, Mouraria ou Bairro Alto, por exemplo.

Já o século XVIII, sobretudo o que se convencionou chamar a cidade pombalina, está ainda representado por numerosos edifícios civis e religiosos, de habitação e outros, com particular destaque para a cidade baixa com as suas ruas ortogonais repletas de edifícios profundamente modificados, prejudicados na sua pureza construtiva, talvez comprometidos na sua segurança, pelos cortes estruturais nos pisos baixos e pelo aumento banalizado do número de pisos, viabilizados pela paz sísmica do século XIX.

Apesar da progressiva substituição dos edifícios depreciativamente designados por “gaioleiros”, pela ruína de alguns e pela especulação imobiliária que atingiu muitos outros, a cidade “nova” de Ressano Garcia está ainda povoada de um grande número de edifícios que, sendo de alvenaria e madeira já nada têm a ver com a construção pombalina, constituindo bandas e quarteirões das Avenidas Novas, do Bairro Camões, de Campo de Ourique, etc.

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Com excepções, os edifícios desta época apresentam degradações importantes, com origem na sua própria construção, na falta de operações eficazes de conservação e em alterações desajustadas.

Numa primeira fase de transição, o betão armado veio ajustar-se a projectos idênticos aos que antes se desenvolviam com estruturas tradicionais de alvenaria e madeira, e deu origem a soluções específicas construídas entre os finais dos anos 40 e meados de 50, recorrendo-se a lajes finas de betão apoiadas em paredes de alvenaria de tijolo, esporadicamente reforçadas com pilares e vigas de betão, nomeadamente em fachadas e nos pisos comerciais muitas vezes a ocupar os pisos térreos; estas estruturas abundam, por exemplo em toda a zona centrada na Avenida de Roma, da zona Nascente das Avenidas Novas até à Avenida do Aeroporto, do Areeiro à Avenida do Brasil, ou seja, na expansão definida por força do dinamismo de outro “iluminado”, o Ministro-Presidente Duarte Pacheco.

Trata-se, por força da ambiguidade estrutural que caracteriza estes edifícios, de um parque habitacional cujo comportamento sísmico coloca legítimas interrogações, até porque a sua relativa modernidade justifica a ausência de estudos destinados a prever esse comportamento e a adoptar medidas de reforço, pois a cidade tem todo o outro parque edificado degradado, à espera de intervenção urgente, para fazer face não a um cataclismo mas simplesmente às inclemências do clima.

As estruturas de betão armado vão evoluindo, como já se referiu, a partir destes edifícios de transição, beneficiando de um ensino quase exclusivamente dedicado a este material estrutural e de uma prática cada vez mais monopolista, com os engenheiros projectistas e construtores a esquecerem o aço, as alvenarias e as madeiras que, na prática desaparecem do mercado, não constituindo oferta significativa.

Essas estruturas são a base de quase todos os edifícios construídos nos últimos 40 anos, numa cidade em que se multiplicam os imóveis não habitacionais antes quase ignorados e as soluções técnicas multiplicam-se, das lajes vigadas que dominam o mercado até aos anos 80, até às lajes fungiformes aligeiradas que são moda nos anos 80 e às lajes fungiformes maciças que se vulgarizam nos anos 90, das estruturas porticadas com vigas e pilares e laminares com paredes que recebem as lajes.

Naturalmente que, em cada época, atravessando as modas e as novidades, vão coexistindo diversas soluções e técnicas, muitas vezes condicionadas pela tradição e experiência de cada projectista ou construtor, pelo que não deve esperar-se encontrar compartimentos estanques e classificações rígidas, antes se confundindo no tempo e no espaço construções pré-pombalinas e pombalinas, estas com os gaioleiros, os quais coexistem com as primeiras aplicações do betão e, a partir daí, estas estruturas evoluem ao sabor do tempo e dos profissionais que as concebem, projectam e constróem.

De forma necessariamente sumária tentou-se uma tipificação do parque habitacional de Lisboa, com incidência nas questões estruturais, afinal aquelas que mais interessam ao problema sísmico e da vulnerabilidade das edificações em relação à acção dos sismos.

Importará agora imaginar, prever, tentar adivinhar o comportamento da cidade construída, caso ocorra um sismo de grande magnitude, similar aqueles que afligiram a então capital do Império nos séculos XVI e XVIII: suponhamos então que no dia primeiro de Novembro do ano de 2005, precisamente 250 depois da grande tragédia, Lisboa é abalada por um sismo “igual” ao de 1755, isto é, com a mesma origem, o mesmo epicentro e a mesma magnitude.

Em tal situação hipotética que é, entretanto, o medo que muitos arrastam, o que acontecerá à cidade: acordará destruída e de luto carregado, contando e chorando os seus mortos ou, pelo contrário, passará incólume pela “besta” e será motivo de orgulho para os lisboetas e de admiração para toda a Europa?

Para tentar a resposta à pergunta começar-se-á pela reprodução de duas notícias distintas que qualquer hipotético diário publicará.

A notícia

I – Desastre anunciado

Lisboa foi ontem abalada por um sismo devastador que reduziu a escombros a cidade antiga, mas ao qual não escaparam construções modernas em todas as zonas da capital do País.

Os primeiros balanços, ainda não confirmados, em virtude do colapso do sistema de comunicações e de abastecimento de energia que isolou a cidade, apontam para estimativas que dão ideia da dimensão da tragédia: mais de 1500 edifícios totalmente arruinados encheram as ruas de escombros, impedindo o acesso de bombeiros e de outros veículos de assistência aos mais de 60000 feridos.

Informações não confirmadas ainda referem cerca de 15000 vítimas mortais, muitas tendo ocorrido com a ruína de dois hospitais e de sete escolas; prepara-se a chegada de ajuda internacional, tendo as Nações Unidas respondido positivamente aos apelos das autoridades nacionais com o envio de brigadas especializadas na busca de vítimas entre escombros e com alimentos, medicamentos e outros bens de primeira necessidade.

Começa a fazer-se sentir uma enorme onda de descontentamento, generalizando-se as acusações de incúria e negligência aos governos das últimas décadas que nunca tiveram qualquer política coerente de salvaguarda do edificado e de reabilitação estrutural de milhares de edifícios que, diz-se, há muito se sabia não terem capacidade para dar resposta adequada a uma catástrofe desta importância.

II- O exemplo de Lisboa

A comunidade científica mundial tem vindo a exprimir a mais profunda estupefacção, perante o resultado do sismo de magnitude 8.2 da escala de Richter, que abalou Lisboa ontem, e do qual a cidade escapou quase incólume, apenas se tendo registado a queda de cerca de uma dezena de edifícios, três dos quais estavam, aliás, a ser objecto de uma operação integrada de reforço estrutural.

Prepara-se o envio de duas importantes delegações americanas e japonesas, integrando os maiores vultos da sismologia e da engenharia sísmica internacional, que têm agendada a participação num curso leccionado por especialistas portugueses que darão conta da regulamentação nacional especificamente dedicada ao reforço sísmico de edifícios e da prática construtiva seguida nos últimos anos, com o que Portugal se colocou na vanguarda dos conhecimentos nesta área.

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Foi entretanto nomeada uma comissão de inquérito com o fim de averiguar o motivo porque se terá dado o colapso de dezenas de chaminés no Algarve, aparentemente porque estes elementos foram excluídos do programa de reforço sísmico; as conclusões do inquérito serão publicitadas nos próximos três dias.

O sismo de Lisboa do século XXI. O cenário

As duas notícias antes publicadas são naturalmente caricaturas e a sua projecção simbólica, em Novembro de 2005, exactamente dois séculos e meio após o terramoto de 1755, não tem evidentemente qualquer fundamento ou justificação.

Mas, se esse sismo vier, e provavelmente chegará, não é provável que suceda o cenário catastrofista simulado em primeiro lugar, mas menos razoável ainda é a hipótese idílica de uma cidade exemplar que todos reconhecemos não existir senão nos nossos sonhos.

E então, com mais ou menos ruínas e, perdoe-se a frieza, com mais ou menos mortos e feridos, alguém escapará para fazer o balanço e para apontar caminhos.

Sempre no domínio da ficção, imagine-se que alguém será encarregado de apresentar um relato sobre as ocorrências a um qualquer recém-nomeado Ministro das Calamidades.

E talvez possa rezar assim: “Em cumprimento do mandato de que fui incumbido, como coordenador de uma Comissão de Análise às Consequências do Sismo de Lisboa, é possível apresentar, no curto lapso de tempo disponível para o efeito, os primeiros resultados do trabalho realizado, o qual consistiu na recolha de toda a informação relativa aos danos sofridos pelos edifícios da cidade e no seu tratamento com o objectivo de se tentar estabelecer uma relação entre as características estruturais dos edifícios, o seu estado de conservação e o grau de destruição que sofreram, de modo a apoiar a tomada de decisões relativas à reconstrução da cidade.

O objectivo deste relatório é apenas o de se debruçar sobre os edifícios e o seu comportamento face ao sismo, numa visão tão fria quanto possível, embora naturalmente perturbada pelo peso de tanto sofrimento que aflige nossa querida cidade.

Embora não exista um levantamento final acerca da extensão dos danos, já que algumas áreas viram destruídos os seus arquivos documentais, o que tem dificultado uma análise cadastral rigorosa, estima-se que o número de edifícios totalmente destruídos seja superior a 1000, apresentando-se muito danificados cerca de 7000, dos quais cerca de um terço se poderão considerar irrecuperáveis, registando-se danos menores noutros 12000 e insignificantes no restante parque edificado.

Só isto dá uma ideia das consequências devastadoras deste cataclismo que tem paralelo no que ocorreu há precisamente 250 anos e do qual veio a nascer a nova cidade que Sebastião de Carvalho e Melo sonhou com Manuel da Maia e Eugénio dos Santos; a estes vultos excepcionais, a quem a História ainda não prestou justa homenagem, devo a obrigação de uma análise rigorosa que ajude a compreender a catástrofe, nas suas causas naturais e nas consequências do desleixo e incúria de gerações que não souberam ler o passado, como sucedeu logo que foi desaparecendo a memória do drama de 1755.

Tentando referir o conteúdo deste relatório à história da edificação em Lisboa e à tipificação construtiva do parque habitacional lisboeta, apresentar-se-á um resumo da situação por época de construção, considerando, por simplificação as seguintes categorias:

a) Construção pré-pombalina, concentrada naturalmente nos chamados bairros históricos e em edifícios notáveis individualizados;

b) Construção pombalina, aquela que edificada a partir de 1755, abrange a zona de reconstrução, centrada na Baixa, mas atingindo algumas zonas dos bairros antigos e mesmo a primeira fase da expansão urbana do século XIX, por exemplo, na Avenida da Liberdade;

c) Construção “gaioleira”, assim conhecida depreciativamente o edificado da Lisboa de Ressano Garcia, na expansão da cidade a Norte e a Poente (note-se que nessa época ainda se pratica, moderadamente, a construção do tipo pombalino, mas apenas pelos tradicionais construtores alfacinhas), correspondendo ao mais vasto conjunto de edifícios, dispersos pela cidade ou concentrados nos bairros novos;

d) Construção de transição para o betão armado, associando paredes de alvenaria e lajes de betão armado, ocorrendo nas zonas construídas a partir da década de 100 Redução da Vulnerabilidade Sísmica do Edificado 30 do século XX, principalmente nas zonas de expansão a Norte (Av. De Roma e Alvalade);

e) Construção da 1ª fase do betão armado, dispersa pela cidade, frequentemente em edifícios isolados resultantes de reconstruções e de preenchimentos da malha urbana; ocorre, sob o domínio dos primeiros regulamentos de betão, estendendo-se até aos anos 70;

f) Construção da 2ª fase do betão armado, correspondendo à consolidação regulamentar e dispersando-se pela cidade, dominando também as novas zonas de expansão que ocupam as derradeiras áreas livres da cidade.

Em circunstâncias normais esperar-se-ia que um sismo com a magnitude e as restantes características que este evidenciou provocasse danos decrescentes com a idade dos edifícios mas, uma primeira análise, permite logo verificar que assim não sucedeu, observando-se um comportamento quase “errático” das diferentes tipologias, sinal de que outros factores, além da tipologia construtiva e a época de construção, teriam de ter tido influência determinante.

Aliás, recorda-se que a propósito do sismo de 1755, a análise dos Registos Paroquiais determinados pelo futuro Marquês de Pombal permitiu trabalhos notáveis de investigação que estabeleceram clara relação entre as condições de fundação dos edifícios e as consequências do sismo sobre os edifícios, questão logo claramente estabelecida, como se depreende da ideia de se vir a transferir o centro da cidade para a zona de Belém.

Com base no conhecimento das tipologias construtivas que caracterizam o parque construído de Lisboa, da sua distribuição geográfica e geológica e condições de fundação, do grau de conservação das estruturas e dos tipos de alterações introduzidas nos edifícios, apresenta-se a seguir uma síntese do que se julga representar a melhor interpretação das consequências do sismo, o que ajudará, espera-se, a definir uma estratégia para as acções de reabilitação e reconstrução da cidade.