A provisão Pública de bens
a) Formas de suprir as incapacidades do mercado
As incapacidades do mercado obrigam pois, para haver níveis aceitáveis de bem-estar social, a actuações correctivas e supletivas de sujeitos económicos não dominados pela lógica do mercado. Tomemos, por exemplo, o caso do farol, bem colectivo que nunca poderá ser produzido para mercado (pondo agora de lado as situações, menos claras, em que há «bens públicos impuros», cujo uso não é necessariamente colectivo, porque a exclusão se torna possível e a consequente imputação individual das satisfações também: auto-estradas com portagem). A sua criação e funcionamento é incompatível com as regras do mercado e, no entanto, a necessidade do farol é sentida por todos os que fazem navegação costeira.
As utilidades que ele presta não podem ser imputadas a um deterrninado sujeito económico que possa como tal pagar a sua criação ou funcionamento, mas são sentidas por todos. Todos o podem usar, sem se prejudicarem uns aos outros nem poderem ser obrigados a pagar para isso.
Suponhamos que um particular resolve – apesar do elevadíssimo custo – construir o farol, porque tem navios que precisam de o utilizar. Ele vai então financiá-lo sozinho, e não pode obter sequer compensação de todos os que o usam: porque o uso do farol é livre para todos os que o vêem e assim o utilizam, à boleia» do construtor do farol. Este só poderia ressarcir-se do custo que suportou para criar este bem disponível para toda a comunidade (ou para número indeterminado de sujeitos) se dispusesse de poder de autoridade, cobrando taxas dos navios que passassem junto da costa ou vedando-lhes o acesso à zona de visibilidade; ora, os particulares não o podem fazer. Ou, então, o mero interesse egoísta chega para financiar o uso do bem: o caminho municipal que conduz à quinta do Sr. Alberto financiado pelo dono da quinta é acessível a todos: pode ser usado por todos, mas o Sr. Alberto além de ser considerado benemérito, fica compensado pelo proveito que tira do caminho. Todavia, isto só sucederá, em regra, com pessoas altruístas e com bens cujo custo de produção ou provisão não seja excessivamente elevado, Pode ainda suceder que vários interessados se associem para construir o caminho de acesso às suas quintas: mas não poderão, se tratar de vias públicas, vedar a utilização a outros, pelo que alguns se sentirão tentados a não participar, beneficiando da obra comum; ou então tentarão cobrar um pedalo ou portagem, ou vedar o acesso aos outros – o que só o poder público pode consentir ou Impor.
Assim, sucederá que bens úteis e necessários não estejam disponíveis, admitindo que todos se motivam pela lógica egoísta da maximização da utilidade individual (se introduzirmos a lógica do benfeitor, ele poderá produzir bens úteis a outros e doá-los ou colocá-los a disposição de outrem; se o benfeitor for ditador… então poderá servir de «modelo elementar» da actuação do Estado). Em tais casos, todos podem cooperar na criação do bem, porque o custo da cooperação é inferior ao de ficarem sem o bem; mas basta que um deles recuse cooperar para que não exista o bem, pelo que a sua provisão ocorrerá raramente. Ou o bem será transformado (ou substituído por) em um bem privado, oferecido apenas aos que cooperem para a sua disponibilidade e de cujo uso estão excluídos outros: caso de uma brigada de bombeiros que apenas socorra os acidentes ocorridos em prédios dos seus contribuintes (é então necessário que a contribuição seja proporcional a utilidade recebida). Ou pode ainda suceder que o bem seja transformado num acessório de um bem puramente privado, fornecido conjuntamente com aquele bem colectivo (um sindicato pode dar segurança aos seus membros, no emprego, por exemplo, e por causa disso prestar outras utilidades. comuns: estas são, em princípio, sempre acessórias e dificilmente dissociáveis da utilidade principal).
Na maior parte dos casos estas fórmulas não são satisfatórias. Então, resta apenas a cooperação ou a coacção (legítima ou de facto; efectiva ou potencial). Assim, fora dos casos em que seja possível a cooperação ou a exclusão do grupo, há que recorrer ao uso da autoridade para produzir os bens necessários.
II. 0 Problema não surge apenas no momento da produção do bem, mas no da utilização (ambas formas de provisão para uso público). É célebre o exemplo da relva comum, dado por DAVID HUME. Os proprietários de uma relva comum podem utilizá-la em comum, isto é, sem recorrerem a qualquer forma societária (que admitiria que alguém cedesse a sua posição a outrem).
Sucederá então que todos ou alguns usem excessivamente a relva: não existe uma autoridade (excepto por imposição de lei que dê tal poder aos condóminos) capaz de restringir o acesso, salvo acordo de todos nesse sentido (mais que não seja, acordando na regra da maioria para assegurar a gestão). Pode suceder que, se todos quiserem usar excessivamente a relva (o mau usa do bem comum também faz parte da noção teórica de «boleia» nos bens públicos), esse interesse a curto prazo prejudique o interesse a longo prazo de dispor da relva. É evidente então a necessidade de uma autoridade – ou dimanada do grupo utilizador ou exterior a ele (2).
III. Os exemplos dados demonstram os limites do altruísmo. Eles servem também para mostrar até onde pode, no âmbito do sistema capitalista, confiar-se nas soluções cooperativas (contratuais ou institucionais; cooperativas de produção ou de serviços; associações de utilidade colectiva – «clubes», etc.), que não dão suficiente lugar ao egoísmo nem dispõem de poder bastante para ultrapassarem dimensões modestas e problemas relativamente simples, não pertinentes as áreas fundamentais da vida em comunidade. Estas só são resolvidas pelo mercado ou pelo poder, enquanto não mudar, se puder mudar, o comportamento humano.
IV. Por outro lado, o poder de iniciativa e auto organização é também, nas sociedades massificadas do mundo moderno, limitado: a sociedade produz mais facilmente bens imateriais (bens de cultura e civilização); no domínio dos bens materiais e dos actos de força, é em regra do Estado que se socorre para resolver problemas mais complexos, inacessíveis ao mercado.
b) O Estado e os bens públicos
Os casos de incapacidade do mercado geram pois situações que, normalmente, e apenas a intervenção de entidades públicas, das quais tomaremos o Estado como protótipo, que permite realizar o bem-estar social, em termos que todos achem desejáveis (2).
É necessário que haja condições sem as quais não existiria a própria colectividade: os serviços políticos, legislativos e de justiça, a defesa, a segurança, certos serviços administrativos gerais, a diplomacia e política extrema, certas infra-estruturas materiais e imateriais. Eis casos de bens colectivos. E necessário gerir, no interesse de todos, os bens cuja provisão tem custos uniformemente decrescentes, que são em regra bens de utilização indivisível, nos quais não existe um problema de superlotação (dentro de certos limites técnicos, fornecer mais um ou menos um é indiferente; embora possa haver imputação dos benefícios individuais, para possibilitar a cobertura dos custos, para limitar o acesso, ou por outros motivos): e o caso do saneamento básico, das vias de comunicação (estradas, pontes), da electricidade e água, de outras infra-estruturas urbanas, de grandes obras de infra-estrutura rural (canais e barragens de rega), etc. É imperativo que o Estado intervenha para socializar as exterioridades, custeando a educação dos mais pobres, financiando a saúde, defendendo o ambiente, cultivando as florestas, etc. É necessário que o Estado assuma riscos de diversos tipos: lançando empreendimentos industriais de grande risco ou criando sistemas de segurança social. Só ele tem meios para traçar e executar políticas económico-sociais e defender o
mercado da concorrência destruidora.
A provisão destes bens públicos pode e deve ser feita pelo Estado por diversas razões:
(1) Ele tem uma perspectiva de interesse geral, ou, pelo menos, os seus órgãos e os detentores do poder confrontam-se com o conjunto da sociedade à luz de critérios de interesse geral.
(2) Tem uma perspectiva temporal ilimitada e uma capacidade de risco superior à dos outros grupos ou associações contratuais.
(3) Dispõe de poder de autoridade para impor regras de utilização dos bens e seu financiamento (coacção, no seu aspecto sociológico).
(4) Tem por via de regra, em cada comunidade, dimensão que lhe possibilita empreender esforços que não estão ao alcance de instituições ou pessoas privadas e que a comunidade inorganicamente não pode resolver com êxito.
c) Formas de Actuação Financeira
Existem assim situações em que há bens públicos (puros ou mistos) que são objecto de actuações económicas do Estado destinadas a criar condições de maior bem-estar económico e social. Estas actuações têm dois momentos distintos:
I) A provisão do bem nas condições adequadas a obtenção da satisfação óptima: isso faz-se prestando serviços públicos ou colocando bens a disposição da colectividade, com carácter duradouro (património estadual) ou em cada ano (despesas públicas). Observar-se-á que em alguns casos se trata de actividades sem as quais não haveria Estado; a defesa do prestígio e autoridade do Estado pode levar a proibir a existência de exércitos privados (mas porventura não de serviços privados de segurança – hoje em expansão, concorrendo com os policiais ou suprindo-os, e fornecendo bens privados a par do bem público da segurança).
Mas isso demonstra, por um lado, que os critérios de decisão do Estado, sendo economicamente racionais, são fundamentalmente polípticos: aqui se pode entender que o ensino deve ser todo público, ali predominantemente privado, além concorrencial (intersectores). Demonstra, por outro lado, como própria lógica do liberalismo leva, em sociedades industriais, ao aparecimento de um aparelho estadual forte, por razões inerentes ao processo complexo de satisfação das necessidades sociais, ainda que se concentre num número restrito e pouco ponderosa de actividades.
II) A obtenção dos recursos necessários a assegurar a provisão dos bens (financiamento: receitas públicas), tanto no que se refere a sua obtenção originária como a manutenção dos bens e a prestação dos serviços públicos.
O recurso à coacção é a forma mais normal de financiar a provisão pública de bens: a imposição, a todos os cidadãos, segundo critérios diversos, de um sacrifício patrimonial para financiar os bens de que, em princípio, todos podem beneficiar (individualmente ou por grupos; efectiva ou potencialmente) e o modo típico de obter recursos, que é acessível apenas ao Estado e outras entidades públicas. A forma mais normal será recorrer a receitas que têm como único fundamento – ou contrapartida – a possibilidade de ter acesso ao uso dos bens públicos: tributos ou impostos.
Os bens e serviços podem ser pagos por preços ou receitas equivalentes. Ou podem ser financiados por donativos ao Estado. Ou podem – então como mera antecipação de receitas futuras – ser financiados pelo recurso ao crédito. Estas são as principais fontes de financiamento da provisão de bens públicos – e a importância da sua problemática evidente nas finanças públicas. (MAFFEO PANTALEONI; cf. SOUSA FRANCO, MFP (r), pp. 20 e 55).
d) Bens Públicos e Bens Privados
A provisão de bens por entidades públicas e privadas não corresponde, no actual e complexo modelo social, a uma relação rígida de correspondência entre tipos de bens e entidades que os produzem. Assim, quanto aos bens colectivos:
- Os bens colectivos são normalmente fornecidos por entidades públicas;
- Pode haver bens colectivos excepcionalmente produzidos por entidades privadas como tais (1), por altruísmo ou interesse próprio (utilidade individual conjunta; mecenato);
- Pode haver provisão conjunta ou por iniciativa comum de bens colectivos por entidades públicas e privadas, caso em que, em regra, a decisão fundamental será pública, contando com a colaboração privada.
E quanto a provisão de bens individuais:
- Pode haver bens individuais oferecidos por entidades públicas: ou por pura lógica política (certas empresas publicas) ou porque a sua produção é necessária para socializar exterioridades ou obviar a outras causas de incapacidade do mercado;
- Pode haver bens individuais objecto de provisão mista (caso muito frequente), paralela ou comum;
- A generalidade dos bens individuais tende a ser objecto de provisão privada.
A produção dos bens pode resultar da intervenção de diversos tipos de entidades públicas, como intérpretes de necessidades da colectividade ou portadoras de necessidades próprias. No âmbito da escolha por critérios de decisão social, ela pode fazer-se por diversas formas: pela provisão do bem por uma entidade pública (ainda que o tenha adquirido a uma entidade privada) ou pela provisão de entidades privadas que actuam como representantes, executoras ou mandatárias de entidades públicas. As empresas privadas concessionárias de bens públicos actuam como se fossem entidades públicas (como o seriam as entidades concessionarias da gestão de empresas públicas): para a colectividade e os particulares elas são órgãos do Estado, ainda que possuam, na relação com o Estado ou a entidade concedente, interesses privados e tenham internamente uma estrutura privada.