A noção de lexema aparece em Martinet (1973), que admite o princípio da dupla articulação da linguagem.
A segunda articulação diz respeito às unidades meramente distintivas, os fonemas. Por sua vez, pela primeira articulação da linguagem, as experiências a transmitir, as necessidades que se pretendem revelar a outrem, analisam-se em uma série de unidades, cada uma delas possuidora de uma forma vocal e de um sentido (1973:11).
As unidades de primeira articulação são chamadas pelo autor de monemas, divididos em lexemas, situados no léxico, e morfemas, situados na gramática.
Justifica sua opção terminológica nestes termos (a propósito de um exemplo, comemos): A tradição distingue com- de -e- e -mos, dizendo que por um lado temos um semantema e por outro morfemas, mas esta terminologia oferece o inconveniente de sugerir que só o semantema teria sentido, por oposição ao morfema, que não o teria, o que não é exato.
Poderíamos julgar que é uma mera substituição nomenclatural, como o próprio Martinet sugere, matizada pela consideração adicional sobre inventário ilimitado x inventário limitado, atribuídos respectivamente aos monemas lexicais e aos monemas gramaticais.
As coisas, porém, não se passam tão simples. Martinet não parece seguro acerca do critério da produtividade em linguística, mensurável em termos de número.
Julga difícil, por vezes, pronunciar-se a respeito deste ou daquele afixo (cf. Martinet, 1973:137). Em virtude disso, afirma que “o que de qualquer modo tem de evitar-se é que a análise ultrapasse os limites permitidos pelo sentido”.
O autor refere-se ao critério da não-limitação dos inventários como pouco rígido, embora seja, para ele, o único aplicável ao conjunto dos casos de derivação.
Por conta dessa hesitação, tende a incluir os afixos entre os lexemas, como atesta a passagem abaixo: (…) Precisemos que não se trata de saber se é ou não possível contar exactamente os monemas susceptíveis de aparecerem em dado contexto, mas sim se o monema pertence a uma série aberta (que hoje talvez comporte um número reduzido de unidades, mas susceptível de aumentar) ou a uma série fechada tal que o número dos elementos que comporta não possa variar sem que daí resulte uma reorganização estrutural: não se procura saber quantos sufixos há em português susceptíveis, como -inho, de formar substantivos a partir de substantivos, porque eles constituem um sistema suficientemente elástico para a cada passo poder aparecer novo sufixo do mesmo tipo sem lhes afetar o valor nem os empregos.
Inteiramente diverso é o caso de sistemas como os do número ou do artigo em português, em cada um dos quais há apenas duas unidades opostas, de modo que, em caso de necessidade, se tem forçosamente de escolher entre singular e plural, entre definido e indefinido.
Num caso destes, qualquer unidade nova teria de arranjar lugar à custa das unidades tradicionais. Implica isso que, uma vez realizadas as condições determinantes do emprego de certo tipo de modalidade, o locutor deve necessariamente escolher entre certo número de monemas: pode falar-se em português dum cruzamento de ruas, sem artigo antes de ruas; mas se se quiser valorizar na mensagem a noção de rua, empregar-se-á necessariamente a rua ou uma rua. Parece pois haver interesse em ver os afixos como um tipo particular de lexemas.
A passagem acima é amenizada por uma ponderação acerca do contínuo léxico/gramática, que faz identificar os afixos como elementos entre os lexemas e as modalidades: Em resumo, a dificuldade que se apresenta em linguística geral para distinguir os afixos das modalidades resulta do facto de lexemas e morfemas representarem dois pólos que não excluem a existência de elementos intermédios, de especificidade maior que a das modalidades e a dos monemas funcionais, mas menor que a especificidade média dos lexemas.
Em outras passagens isoladas, todavia, o linguista francês procura ser mais assertivo no que tange à diferença entre lexemas e afixos. Em determinado momento, caracteriza o afixo em termos de oposição entre derivado e composto: “o monema passa do estatuto de elemento de composto ao de afixo, desde que se deixa de empregar fora da composição…” (1973:136).
Em outro momento, na mesma página, reafirma o critério estatístico associado ao critério semântico para caracterizar o lexema.
Acerca do exemplo termómetro, (…) São sobretudo elementos chamados eruditos, que originariamente fazem parte de importações de uma língua „clássica‟ e são entendidos como formando unidades significantes pelos que os lançam em uso. Mas desde que se tornam numerosas e usuais as palavras deste tipo, acaba por emergir o sentido dos seus componentes (…).
A relativamente grande especificidade semântica dos dois elementos, apoiada por vezes no conhecimento da etimologia, pode levar a interpretar tais formações como compostos.
(1973:136) No entanto, arrefece o tom da assertiva, quando se reporta a elementos como tele-, “particularmente favorecidos pelas descobertas dos últimos séculos e hoje livremente combinados com monemas ou sintagmas existentes fora das combinações em causa (…)”.
Afirma que o comportamento é de afixo, para, em seguida, estabelecer: “Trata-se de situação linguística particular, a qual se não identifica com a composição propriamente dita nem, geralmente, com a derivação que supõe a combinação de elementos de estatuto diferente.” (1973:137) A hesitação persiste.
Em princípio, “o afixo se define como formando com um lexema não-derivativo um complexo susceptível de funcionar exactamente como lexema simples e de se combinar com as mesmas modalidades (…)” (1973:139).
Todavia, objeta de imediato que pode conceber-se uma língua em que o substantivo acompanhado de artigo se comportasse integralmente como o mesmo substantivo sem artigo, sem pensarmos por isso em ver um derivado no sintagma artigo + substantivo e um afixo no artigo, por o facto de o artigo pertencer a um inventário limitado lhe dar carácter de generalidade e de abstracção que é afinal o que nas modalidades nos chama a atenção.
(1973:139) O alcance dos termos lexema e afixo não se nos afigura claro. No que respeita ao primeiro, por exemplo, parece abranger, em determinado momento, mais ou menos o que se entende por raiz, descontada a orientação doutrinária fundada no critério de freqüência, este relacionado com a noção de inventário ilimitado, já aludido.
Noutro momento, parece abranger não apenas o conceito de raiz, mas também o de afixo. Esta oscilação decorre, em parte, da perspectivação dialética de Martinet, que acaba por conduzi-lo a ver, por vezes, os factos com temperança e a mitigar, pelos menos em alguns momentos, a diferença entre léxico e gramática.
Ele próprio reconhece que há monemas como contra, que podem figurar no léxico ou na gramática, mas opta por incluí-los entre os morfemas. Pottier se vale também do termo lexema.
Parte da lexia, a unidade lexical memorizada, dividida em simples, correspondente à palavra tradicional, e em composta, resultado de uma integração semântica, que se manifesta formalmente, em complexa, sequência em vias de lexicalização, e em textual, lexia complexa que alcança o nível de um enunciado (cf. Pottier, 1975: 25-28, Pottier et al. 1975:26-28).
O autor, partindo de uma fundamentação estatística mais explícita, chega a resultados mais consistentes que os de Martinet, todavia bem menos dialéticos.
Ele reconhece a classe dos lexemas e formantes, sobre os quais se exprime nestes termos: Baseando-se nas possibilidades combinatórias no interior de uma mesma classe de morfemas, distinguimos os lexemas, que pertencem a uma categoria com um grande número de variáveis (p. ex.: a partir de cinco mil em francês), e os formantes ou morfemas que pertencem a uma categoria com pequeno número de variáveis facilmente determinável (p. ex.: abaixo de cem).
(1962: 95) Pottier recorre a uma base estatística por rejeitar a tradicional divisão entre vocábulos de conteúdo nocional e vocábulos vazios deste conteúdo. Voltado para a distribuição dos lexemas e formantes na lexia, o autor, inclinado a apresentações esquemáticas, oferece uma tipologia dos morfemas gramaticais.
Numa zona quatro, situam-se os morfemas lexicais; à esquerda, em três zonas, os de natureza prefixal: morfemas gramaticais semi-autônomos, de natureza quantitativa (multi-, super-, bi-), morfemas gramaticais integrados (in- negativo, re-) e morfemas gramaticais autônomos, que correspondem aos relatores (sobre-, contra-, des-); por fim, nas demais zonas, os morfemas sufixais: os de aspecto e formulação do processo, os de grau e os sufixos de concordância. Talvez a distribuição dos morfemas em relação ao lexema sugira algum tipo de gradação dos mesmos, que o autor não explicitou bem.
Por este prisma, os mais periféricos, como as desinências, seriam “mais gramaticais”. O próprio autor sugere gradação pela nomenclatura utilizada: morfemas gramaticais semiautônomos, por exemplo, para os de natureza quantitativa, como bi-, super- e vice-, talvez pela autonomia acentual deles, do que decorre a possibilidade de funcionarem isoladamente: bi- em lugar de bicampeonato, vice em vez de vice-prefeito.
Não obstante as diferenças, os morfemas lexicais e gramaticais comungam da possibilidade de descrição semântica. Para exemplificar apenas com os primeiros, há que se distinguir os semas específicos, que permitem diferençar os morfemas mais próximos de um mesmo domínio, sendo descritivos ou combinatórios; os semas genéricos, que indicam a pertinência a classes conceituais; os semas virtuais, que correspondem às associações disponíveis nos locutores de uma comunidade homogênea.
Em suma, o termo lexema em Pottier é mais unívoco que o mesmo termo em Martinet. Além disto, assenta-se sobre produtividade em termos numéricos explícitos e numa evidente demarcação entre léxico e gramática, o que se atesta pela própria terminologia em termos opositivos: lexemas x gramemas. Apenas por comodidade didática, podemos aproximá-lo do termo raiz.